23 de setembro de 2019 | 03h00
O Brasil não chegará a bom lugar sem um entendimento mínimo sobre uma agenda comum. Nos anos 80, essa coesão foi fundamental para conduzir o País da ditadura para a democracia. Na década seguinte, os brasileiros deixaram suas diferenças de lado para construir um amplo concerto com vista a estabilizar a economia, por meio do Plano Real. Esses edifícios coletivos – o respeito à democracia e a valorização dos fundamentos econômicos – permanecem razoavelmente sólidos desde então exatamente porque não foram fruto do voluntarismo de um líder messiânico ou da visão exclusiva deste ou daquele partido político. Resultam, ao contrário, de um amplo processo de negociação e diálogo, do qual só não participaram os extremistas, à esquerda e à direita, inconformados com a marcha dos acontecimentos e desde sempre incapazes de aceitar a realidade.
Esse avanço, contudo, parece ter sido interrompido, exatamente porque alguns dos principais líderes políticos atuais, em especial aqueles em posição de comando no País, escolheram o confronto em vez da conciliação – isto é, abandonaram a política e entregaram-se ao jogo de soma zero, em que, para que um jogador ganhe, outro deve necessariamente perder.
O lulopetismo amarga hoje a cadeia, mas em seu lugar surgiu o bolsonarismo, tão deletério para a democracia quanto seu antípoda. O discurso bolsonarista é naturalmente desagregador, o que inviabiliza qualquer tentativa de alcançar um mínimo denominador comum entre os brasileiros. Ademais, o bolsonarismo extrai sua força das bolhas ideológicas alimentadas pelas redes sociais. Nelas, os militantes encerram-se em suas certezas, formando comunidades de milhares de pessoas em que a base da coexistência é a crença fanática naquilo que dizem seus líderes, não sendo admitida qualquer forma de contestação.
Nessas redes, sem as quais o bolsonarismo não teria sucesso, só circulam informações cuja função é confirmar a visão de mundo predominante do grupo. Ao mesmo tempo, muitos dos movimentos que se opõem a Bolsonaro estão igualmente limitados a seus cercadinhos virtuais, que também restringem informações que possam enfraquecer seus argumentos.
Como resultado disso, esses grupos violentamente antagônicos dificilmente conseguirão concordar sobre os fatos do mundo real. Ou seja, o senso comum daquilo que é verdade simplesmente deixa de existir.
Essa situação cria um significativo obstáculo para a democracia e para o exercício do poder e da cidadania. Se a sociedade está dividida de tal maneira que não consegue chegar a um acordo mínimo nem sequer sobre a realidade, então encontram-se inviabilizadas, de saída, quaisquer tentativas de formulação de políticas públicas amplas e efetivas. Afinal, só é possível travar um debate racional a respeito dessas políticas se os dados da realidade forem aceitos por todos os participantes.
Não é por acaso que líderes com vocação autoritária contestam as informações oficiais quando estas contrariam sua “verdade” e mobilizam as redes sociais para denunciar o que chamam de “fake news”. Autênticos democratas, por outro lado, são aqueles que admitem que a verdade não é aquela produzida por seu discurso, e sim pelos fatos da vida, e que esses fatos são passíveis de interpretações as mais diversas. A tarefa dos líderes é aceitar a legitimidade dessas visões distintas e trabalhar para encontrar algum entendimento.
Tal tarefa exige da sociedade que recupere o quanto antes o senso comum do que é a realidade, percebida a partir de informações cuja validade é aceita pela maioria das pessoas racionais. Sem isso, nenhuma governança é possível.