DOUTOR ROSY, O MÉDICO DO MEU SERTÃO
Raimundo Floriano
Doutor Rosy (29.07.1917 – 03.07.2000)
Balsas viveu, no mês de junho de 1945, episódio que ficará marcado em minhas lembranças para todo o sempre.
O fim da Segunda Guerra Mundial, a 8 de maio, já deixara todos os corações aliviados, principalmente dos mancebos da cidade, alguns sorteados para o treinamento militar, outros já convocados, aguardando embarque, e sossegara a fértil imaginação da meninada, que via, a cada avião que passava, lá nas alturas do céu, grande contingente de alemães prontos a invadir o nosso querido torrão. Mas não foi isso nem o tradicional Festejo de Santo Antônio, de 1º a 13, que tornaram aquele mês indelével nas reminiscências de minha infância. Algo extremamente grandioso iria acontecer.
A cidade receberia, na segunda quinzena, o primeiro balsense formado em Medicina, que viria para ali exercer o seu sacerdócio. Se bem que nascido no município maranhense de Grajaú, Roosevelt Moreira Kury, o Rosy, como era conhecido, filho do sírio-libanês Elias Alfredo Kury e Dona Nilza, viera com a família morar em Balsas ainda nos cueiros.
Seu Curi, assim chamado, grande fazendeiro, apicultor, columbófilo e comerciante de secos e molhados, era um homem muito culto, e isso se pode depreender, tanto pela primorosa educação que deu aos filhos, quanto pelos nomes com os quais os batizou. Nada de João, Pedro, Maria, Francisca, comuns na região. Os dele eram Hamedy, Jorge Clemenceau, Virgínia, Roosevelt e Elenil.
Tudo se mobilizava para o grande baile de recepção. Na casa do meu Tio Cazuza, a varanda, espaço reservado para os importantes eventos sociais, teve seu piso de ladrilhos recoberto com tecido, no qual se aplicou uma camada de parafina, preparado para os 12 pares que, à meia-noite, ponto culminante da festa, dançariam, todos trajados a rigor, ao som de Martinho Mendes e Seu Conjunto, a valsa Sobre as Ondas, de J. Rosas. Mas aí surgiu um grande problema para a formação dos casais de dançarinos, como passo a relatar.
Havia duas camadas sociais distintas que nunca se mesclavam nas festas dançantes: a primeira, composta pelas pessoas mais abastadas, dita “Sociedade”, e a segunda, formada pelos menos apercebidos, também chamada de “Pipiral”. Jamais se misturaram, a não ser no ano anterior, na primeira eleição após o período ditatorial de Getúlio Vargas, quando se celebrizou um tipo de festança em que as classes não se distinguiam e era denominado “popular”.
Doze rapazes da sociedade apresentaram-se para o bailado, mas o número de damas perfazia apenas dez.
Convocaram-se os chefes de família da Sociedade para estudar o comportamento e o mérito das senhoritas do Pipiral, no intuito de promover duas delas à elite. Ao final, foram escolhidas a Benilde, filha do Seu Antônio Pereira, e a Antônia, filha do Seu Filintro Melo.
Maravilhosa foi essa valsa, os cavalheiros com solenes ternos pretos e gravatas-borboleta, e as damas, de branco, em seus luxuosos vestidos longos. Depois disso, as moças de bom procedimento do Pipiral, que eram a sua maioria, passaram a frequentar os bailes da Sociedade, sem mais qualquer distinção. Liberou geral!
Foi o primeiro bem que o Doutor Rosy proporcionou à cidade!
Passadas as festividades, o médico iniciou a sua missão de curar.
Toda a população do sertão sul-maranhense, especialmente dos municípios de Balsas, Carolina, Riachão, Mangabeiras, Loreto, Sambaíba, Batateiras, Tasso Fragoso, Alto Parnaíba, São Félix, Imperatriz, São João dos Patos e outros teve na pessoa do Doutor Rosy a segurança no diagnóstico e a destreza no bisturi. Não há por ali família alguma que não tenha passado por seus cuidados médicos, sempre exercidos com prestimosa e extrema dedicação.
Uma de suas primeiras ações não remuneradas, pois só cobrava de quem tivesse condições de pagar, foi examinar todos os alunos do Grupo Escolar Professor Luís Rego, a maior escola pública da região. Media a pressão, auscultava com o estetoscópio no tórax e, com o ouvido nas costas de cada um, mandava respirar fundo e contar 33, depois, abrir a boca, botar a língua pra fora e dizer ahhhhhh! O resultado de cada exame era anotado num caderno. A molecada, toda ela sadia, não deu trabalho nem preocupação ao doutor. Mas, depois de tudo, a novidade, o diagnóstico que caiu como uma bomba e se espalhou por toda a escola: um menino chamado Raimundo sofria de “faringite”!
Ninguém de nós sabia o que era aquele troço de faringite, porém com um nome tão bonito, logo apareceram os candidatos a enfermo. Raimundo Buracão, que morava ali onde hoje é o Hospital São José, avocou para si a doença e, para comprová-la, todo o dia, quando chegava ao Grupo, se mijava nas calças. Raimundo Nonato, vulgo Cacete, dela não abriu mão, e até mancava um pouco, demonstrando sua condição de padecente. Raimundo Porrotô deu pra andar de marcha a ré pra trás, feito siri-patola. Raimundo Florentino até batia em quem dissesse que não era ele o vitimado. Nos esclarecimentos do doutor, dias após, a decepção para alguns: o Raimundo da faringite era o Floriano, este que agora lhes fala. E, por muito tempo, fui alvo da admiração de uns, da inveja de outros e da indiferença da maioria, por ser o paciente com a fascinante moléstia.
Doutor Rosy ensinou-me, desde cedo, o que era nepotismo, palavra tão em voga nos dias de hoje. Começou a engraçar-se de minha prima Violeta, com quem viria a casar-se e, a partir do namoro, não quis mais receber um centavo sequer do pessoal lá de casa. Esse nepotismo durou ao longo de toda a sua vida, e foi o doutor quem, com desvelo, assistiu meu pai e minha mãe, até quando exalaram seus últimos suspiros.
Além da Medicina, exercia, com desprendimento, a função de professor de Matemática no Ginásio Balsense, do qual foi um dos fundadores e diretores. Quem passou por suas mãos angariou conhecimentos que o tornariam apto a partir para outros desafios. Não há exemplo de aluno seu que tenha fracassado na vida.
Até meados dos Anos 1950, a cidade ressentia-se da carência de uma ponte que ligasse a sede do município ao bairro Tresidela, situado à margem direita do Rio Balsas. Havia apenas uma canoa que fazia a travessia de pessoas, animais e mercadorias. A vida era muito difícil para os estudantes, pois as escolas ficavam todas na sede; para os produtores de ambos os lados, cujo comércio dependia totalmente daquele único veículo; e para os moradores, na sua rotina diária.
Em 1955, Doutor Rosy foi eleito para o cargo de Prefeito. Sua primeira providência foi mandar construir, no Porto do Fonseca, a tão esperada ponte. A obra ficou a cargo de Seu Luiz Botelho Barbosa, projetista e construtor naval, com planta trazida da Itália por padres da Prelazia de Balsas, numa engenharia ousada para a época: toda de madeira, suspensa por cabos de aço. E lá ela permanece até hoje, bela, benfazeja, firme, incólume.
Só um quarto de século mais tarde, já nos anos 80, é que foi construída, no Porto do Lava-Cara, a ponte de cimento.
Ponte Velha: marca da Administração Rosy
Os benefícios que proporcionou à cidade como médico, no magistério e na prefeitura o credenciavam a postular um novo mandato, isso em 1965, pois ainda não fora instituída a figura da reeleição. A História está cheia de exemplos comprobatórios da máxima que diz que o povo é iconoclasta – adora destruir seus ídolos. E sabem como foi que a população balsense agradeceu àquele que lhe proporcionava tanto bem? Elegeu o outro candidato! Este, diga-se de passagem, era o Doutor Didácio Santos, também um homem honrado, que já fora prefeito anteriormente e que, nesse novo mandato, deixaria sua marca ao promover, em 1968, com retumbante sucesso, as festividades comemorativas do Cinquentenário de Balsas.
Em janeiro de 1961, eu me encontrava de férias em Balsas. Numa tarde de domingo, Doutor Rosy chegou lá em casa, com fisionomia apreensiva, e me perguntou se eu tinha uma arma. Diante de minha afirmativa, pediu-me que a municiasse, enchesse os bolsos de balas e o acompanhasse. Acho que ele me escolheu para isso porque eu era sargento do Exército, sabendo, portanto, comportar-me em situações de risco, e, também, por ser primo da Violeta, sua mulher. Enfim, éramos parentes, ou seja, farinha do mesmo saco.
Obedeci. Rumamos para o Hospital São José e, no caminho, ele me contou todo o bê-á-bá. O empreiteiro que construía a estrada de Balsas para Floriano, chamado Raimundo Pinto, acabara de dar entrada no hospital, todo cortado de facão e machado – do couro cabeludo aos pés –, consequência de briga, na noite anterior, com alguns dos seus peões, da qual resultara até morte. Doutor Rosy, receoso de que houvesse uma tentativa de reação dos contendores rivais, no momento da cirurgia, precisava de alguém que garantisse sua segurança enquanto operasse o ferido.
E assim se deu. O paciente não podia ser anestesiado, por ter ingerido muito álcool, nem dormir, coisas da Medicina. Era esta a cena: Seu Raimundo Pinto sentado na maca, o doutor costurando, uma freira instrumentando, e eu, com a mão direita empunhando o revólver, e com a esquerda ajudando a manter na melhor posição o lesado, que não emitiu um só gemido em toda aquela operação. De vez em quando, para que ele não dormisse, o doutor chamava bem alto: SEU RAIMUNDO, SEU RAIMUNDO! Coisas da Medicina.
Já à noitinha, findo o trabalho, retiramo-nos, e o empreiteiro ficou num quarto, aguardando o restabelecimento. Assim pensávamos. Mas que nada! Nem amanheceu lá! Foi só recuperar-se do estado alcoólico, deu com a asa no mundo. Raspou-se! Deixando para trás, abandonados ao deus-dará, seus tratores, suas máquinas, seus caminhões, suas caçambas e tudo o mais que ali possuía. E dele ninguém nada mais soube!
O Doutor Rosy foi, além de meu conterrâneo, parente e amigo, um grande mestre em sabedoria, instruindo-me sobre muitas coisas práticas do nosso sertão.
Certa noite de lua, num daqueles costumeiros bate-papos na porta da Farmácia de Dona Lourdes, presentes o Bernardino, Antônio Pires, Gonzaguinha, Tadeu, Angelino, Tião Bradesco, Cabo Júlio, Moizemar e outros mais, quando o assunto era mordida de cascavel, ensinou-nos a fazer torniquete, que era amarrar uma corda ou tira de pano logo abaixo da picada e apertar. Perguntei-lhe como proceder, se a lesão fosse no rosto. Respondeu que, geralmente, a cobra morde é no calcanhar ou na perna.
Insisti:
– E se eu for passando debaixo de uma árvore, e ela estiver ali, num dos galhos, e me atacar?
Aí, o Sábio nos deu a grande lição:
– Desinfete com mercurocromo, álcool ou merthiolate, porque cobra venenosa não sobe em pé de pau!
A conterrânea Ralucildes Marcon, hoje residente na cidade catarinense de São José, me relatou um lance que não posso deixar de levar adiante. O doutor tinha aquela cara de durão, não se abria à toa, mas, lá no fundo, era um tremendo gozador. A mãe dessa amiga, a Luzia, e o avô, Seu Pinto, eram enfermeiros no Posto de Saúde, onde ele atendia as pessoas carentes, muitas delas residentes nos arrabaldes ou em propriedades rurais distantes. Para certos casos, Doutor Rosy tinha o método infalível, antes de examinar: a hidrossaponiterapia. Conforme fosse homem ou mulher, encaminhava o paciente ao Seu Pinto ou à Luzia, para que lhes aplicasse o prévio tratamento hidrossaponáceo. Era, então, o enfermo levado ao tanque, onde lhe ministravam um belo banho com água, sabão de coco e esfregação com bucha. Logo após, começava a consulta propriamente dita. O doutor perguntava:
– Muito bem, de que é que você se queixa?
E o matuto:
– Engraçado, doutor, num sinto mais nada, fiquei bonzinho!
E, a partir de então, mesmo sem que o doutor o recomendasse, passava a tomar banho com sabão, pelo menos uma vez por semana.
Esta quem me contou foi o Gonzaguinha, saudoso amigo e irmão de leite. Passo-a para vocês do jeito que a ouvi. Já na era do telefone, uma cliente ligou para ele, aflita:
– Doutor Rosy, me receite um remédio porque eu estou sentindo uma dor desgraçada!
– Onde é que está doendo, minha senhora?
– É no apendicite, doutor!
– E como é que a senhora sabe que é no apêndice? De que lado é a dor?
– Do lado esquerdo, doutor!
– Mas minha senhora, acho que há um engano. O apêndice fica do lado direito.
E a cliente:
– Doutor, é do lado esquerdo de quem entra!
E esta outra me foi contada pela Maria Isaura, minha saudosa irmã e madrinha.
A moça viera lá de fora, do sertão. Trazia consigo uma aura de mistério, conforme adiante se verá. Seria submetida a delicada cirurgia para correção de graves problemas gastrointestinais, não sei bem, coisas lá da Medicina. Antes de dar entrada no hospital, ela chamou o Doutor Rosy para uma conversa muito particular:
– Dotô, eu queria fazer um pedido?
– Pois não! Diga o que é! – Respondeu o doutor.
– O senhor vai me operar é no estambo?
– Sim!
– Do pé do imbigo pra baixo?
– É ali mesmo!
– Pois dotô, eu queria pedir pro senhor fazer um conserto, mode eu poder fazer o que todo mundo faz e eu nunca fiz. Pra falar de vera, é dos pouco adivertimento que pobre pode ter sem pagar nada. Todo mundo lá no sertão se adiverte, só não eu! Nessa idade, fico só vendo a felicidade dos outros! Será que o senhor pode me ajudar?
Doutor Rosy, um tanto curioso, falou:
– Dependendo do caso, talvez a ajuda esteja ao meu alcance. Qual é o problema?
E a moça esclareceu:
– Dotô, eu nunca soltei um peido!