DORMINDO AMARRADO
Raimundo Floriano
Olhos apavorantes
Quando eu tinha 12 anos – há uns quatro sem chupar mais o dedo –, andava muito assustado com as histórias de Trancoso que ouvia, principalmente as de assombração. Tinha – e ainda hoje tenho – medo de alma que me pelava. Sempre que me deitava na rede pra dormir, rezava pedindo que nenhuma delas me aparecesse na escuridão da noite.
Certa madrugada, fui acordado por uma visão apavorante que, em riba de meus peitos, olhava fixamente para mim com duas tochas brilhantes, dum tanto que chega encandeavam minhas vistas. Do jeitinho que vocês viram na figura acima.
Quase me borrei de pavor! Pensei, é onça! Mas não era, pois não senti o cheiro peculiar da fera. Pensei de novo, é o cão, o capeta! Mas o cão não era, pois me benzi três vezes, e as tochas continuavam insistentemente a mirar-me! Aí foi que o terror me dominou! Só podia ser aquela coisa que eu mais temia, para livrar-me da qual eu não sabia qualquer tipo de reza: ALMA! E, aí, vali-me do último recurso que me restava. Danei-me a gritar com todas as forças:
– AAAAA! AAAAA! AAAAAI! AAAAAAAAAAI! AAAAAAAAAAI!
Acordei toda a casa. A primeira pessoa que me acudiu foi Dona Maria Bezerra, minha saudosa mãezinha, que correu pra meu quarto com uma lamparina acesa. Atrás dela, vieram meu pai e alguns irmãos. Nessas alturas, a aparição sumira, esvaíra-se como fumaça. Ela, após ouvir minha história, tranquilizou-me, disse que teria sido o gato Bertoldo, à procura de rato, e mandou que eu me deitasse e procurasse dormir novamente. Foi o que fiz.
Mas não fora gato não! Só na manhã seguinte, ao passar pela cozinha rumo ao quintal, descobri a razão de meu tormento noturno.
Na véspera, chegara lá em casa, para ajudar minha mãe nos serviços de copa, cozinha, costura, bordado, tear e outras prendas domésticas, a Felismina, morena de seus 18 anos, possuidora dos olhos mais verdes que eu já vira naquele rincão, tão verdes que pareciam duas bolotinhas de esmeralda, tão verdes como os rios bravios que correm pro mar, refletindo nas águas a floresta em suas ribanceiras. Ficaria algum tempo conosco, aprendendo todos os dotes necessários para que assumisse os encargos de boa esposa, tendo em vista que seu casamento estava próximo.
Naquela noite, eu já fora dormir pensando nela!
Olhos de morena sertaneja
E, nos dias seguintes, mais se acentuou o feitiço que a Felismina exercia sobre mim. Quando eu olhava pra ela, meu corpo se arrupiava todinho, e eu não sabia o que era aquilo. Para acalmar-me, comecei por viciar-me em laranja-da-baía. Pegava uma, fazia um furinho bem na ponta do embigo e ficava mamando, com o pensamento todinho voltado para a Felismina.
Laranja-da-baía curraleira
Isso durante o dia, porque, todas as noites, dali pra frente, fui atacado por aguda crise de sonambulismo. De madrugada, eu saía a vagar pela casa, dormindo, mas com destino certo: sempre no rumo do quarto da Felismina.
Quase ninguém na casa – cerca de 15 pessoas, contando meus pais, irmãos e serviçais – parecia notar aquele meu vaguear noturno. Apenas uma pessoa estava ciente de tudo, a Felismina, razão de minhas quimeras. Certa madrugada, quando eu passava pela porta de seu quarto, ela me puxou pra dentro, levou-me pra sua rede, deitou-se comigo e falou bem baixinho:
– Mama aqui!
Fiquei viciado! E, toda madrugada, a Felismina me ensinava cada coisa! Divertimentos que eu desconhecia e jamais imaginara poderem existir naquele longínquo sertão.
Mas tudo que é bom, dura pouco! Chegou fevereiro de 1949, e eu seria mandado para Floriano, onde faria o Exame de Admissão ao Ginásio.
Na madrugada de 4 para 5, dia do embarque, rumei para dar a sonambulada de despedida. A aula sertaneja demorou mais do que de costume, pois quando eu ia saindo do quarto da Felismina, fui flagrado por minha mãe, que já estava iniciando sua faina diária. Ao vê-la, fui atacado de forte sonambulismo, o que fez com que ela se apavorasse, acordasse Seu Rosa Ribeiro, meu saudoso pai, e falasse com muita preocupação:
– Rosa, como é que vamos deixar este menino embarcar no Motor, com o risco de sair caminhando de noite, cair no Rio Balsas e se afogar?
Meu pai resolveu o problema: eu dormiria amarrado! Providenciou uma corda para que, todas as noites durante a viagem, eu amarrasse uma ponta no punho da rede e a outra numa das pernas.
Na hora da triste partida, quando eu seguia para a Rampa, pensava na Felismina e também em meu pombal e meu pé de mamão, estas preciosidades materiais que eu possuía e que, com a distância em que me acharia, pareciam delimitar a perda da infância e a entrada na adolescência.
Pertinho de embarcar no Motor Pedro Ivo, minha mãe contou tudo ao Comandante Luiz Barbosa, nosso aparentado, e recomendou-lhe que verificasse muito bem se eu estava cumprindo as medidas de segurança. Zarpamos!
Ao cair da noite, paramos na Sambaíba, distante 20 léguas rio abaixo, onde predominava a indústria da construção de barcos, com o maior estaleiro fluvial de toda a Bacia do Parnaíba. Depois da janta, em obediência ao determinado por meus pais, armei minha rede, deitei-me, amarrei-me bem amarrado, com uma ponta da corda em minha perna direita, outra num varão do motor, fiz minhas orações e dormi.
A dormida no motor
Na noite seguinte, eu já ia começando a amarração, quando o Comandante Luiz Barbosa chegou e me pediu a corda, dizendo:
– Preciso dela pra armar a rede dum passageiro!
– Mas Seu Luiz...
Ele nem me deu ouvidos. Com um sorriso maroto, liberou a corda e sumiu com ela.
Na verdade, ela não me fez falta. Desde aquela noite, fiquei curado totalmente do mal do sonambulismo.
Ao retornar de férias, já me esquecera da Felismina. Até porque eu soube que ela casara e fora para uma fazenda cuidar de sua vida com o marido. E também porque, em Floriano, eu vira muitos olhos femininos, de variadas cores, tanto na vida real quanto no cinema, que despertaram em mim outros sonhos e outros desejos.
Fixava meu pensamento apenas no pombal e no mamoeiro, dos quais no episódio anterior lhes falei.