Maria Elisa Alves
Dorinha Duval começou a carreira como cantora, experimentou dias de vedete e se encontrou como atriz. Atuou como uma das irmãs Cajazeiras na antológica novela "O bem-amado" e interpretou a Cuca no "Sítio do Pica-pau amarelo". Tinha o status de celebridade quando, na madrugada de 5 outubro de 1980, há 40 anos, disparou três tiros contra seu marido, o produtor publicitário Paulo Sérgio Garcia Alcântara, durante uma briga que seria publicamente emiuçada a partir de então.
Foi a própria artista que ligou a amigos pedindo ajuda para o marido. Mais tarde, enquanto Paulo Sérgio era operado no Hospital Municipal Miguel Couto, na Gávea, Dorinha, muito abalada, saía de cena. Sem saber que o marido morrera na mesa de cirurgia, foi para a casa de um amigo e só se entregou à polícia dois dias depois. Entre goles de água com açúcar e crises de choro, apresentou uma versão que a acabou transformando, aos olhos de muita gente, também em vítima. Aos moldes de Doca Street, que assassinara quase quatro anos antes a pantera Ângela Diniz, alegando defesa da honra, em outro caso que mobilizou a opinião pública, Dorinha dizia ter sido ferida física e moralmente. Atirara em legítima defesa, garantia ela.
A briga teria começado dentro do quarto do casal, numa casa no Jardim Botânico. Dorinha e Paulo Sérgio tinham acabado de voltar de uma festa no Leblon. Saíram cedo, por volta de meia-noite, porque a atriz tinha um compromisso no dia seguinte em Belo Horizonte. Quando arrumava a mala para a viagem, num quarto ao lado, Dorinha ouviu o marido chamá-la diversas vezes. Ao encontrá-lo só de cueca, deitado, imaginou que a insistência era porque ele queria fazer sexo. Em depoimento à polícia, ela contou que foi para a cama, mas que, ao tentar abraçar Paulo, foi repelida. Detalhou também como foi o diálogo que precipitou a tragédia:
— Você é uma velha, não quero mais nada com você — teria dito Paulo, de 35 anos, a Dorinha, de 51.
Mesmo humilhada, a atriz teria tentado contornar a situação e agradar ao marido. Disse que poderia se submeter a uma plástica.
— Não adianta plástica, eu gosto de menininha nova, não quero uma bruxa remendada — teria continuado Paulo, passando a agredir Dorinha com chutes e tapas.
A atriz contou que pediu ao marido que parasse de agredi-la, ameaçando se matar.
— Ótima ideia, o revólver está ali — ele teria retrucado, apontando para a arma que comprara meses antes, por causa de um assalto do qual fora vítima na porta de casa.
A partir deste ponto, Dorinha dizia que era tudo uma névoa:
— Peguei o revólver e, a partir daí, não me lembro de nada, até quando o vi ensaguentado, caído no chão.
Numa época em que o machismo imperava, e crimes cometidos por homens contra esposas eram vistos com certa naturalidade, Dorinha subvertia a "ordem". Tornava-se a mulher que matou o marido. Os amigos de Paulo Sérgio não perdoaram: diziam que a atriz sentia um ciúme doentio e que, dois meses antes, atirara na direção do companheiro. Os defensores de Dorinha argumentavam que Paulo Sérgio a explorava e que a ela, volta e meia, era obrigada a pagar as dívidas de pôquer do marido.
Levada a julgamento três anos depois, a artista teve sua história explorada no tribunal. Seu advogado, Clóvis Sahione, evocou um passado repleto de traumas afetivos, listando um a um: estuprada aos 15 anos, aos 18 se encantou por um trapezista de circo que, mais tarde, a abandonou. Com uma gravidez tubária e sem dinheiro para interromper a gestação, Dorinha foi obrigada a fazer um acordo com o diabo: uma cafetina deu a quantia necessária para o aborto, com a condição de que a jovem, depois, se prostituísse por seis meses para pagar a dívida.
O júri ouviu as testemunhas de defesa de Dorinha — o humorista Chico Anysio e o ator Paulo Goulart, por exemplo, atestaram o caráter pacífico da atriz.
No fim, foi estipulada uma pena de um ano e meio de detenção, a ser cumprida em liberdade, já que a artista, que havia sido casada com Daniel Filho e tinha uma filha, a hoje atriz Carla Daniel, era ré primária e de bons antecedentes.
Como o promotor recorreu, Dorinha foi levada a novo julgamento em 1989. Mais uma vez, os jurados foram condescendentes. A atriz foi condenada a seis anos de reclusão em regime semiaberto, o que era a pena mínima para homicídio simples. Tinha o dia livre e precisava apenas dormir na prisão, em Niterói. Afastada da TV, virou artista plástica.
Em 2002, a ex-atriz publicou a biografia “Em busca da luz: memórias de Dorinha Duval”, escrita pelo jornalista Luiz Carlos Maciel e pela publicitária Maria Luiza Ocampo.
Hoje, aos 86 anos e aposentada, Dorinha mora na Zona Sul do Rio. Localizada pelo GLOBO, ela disse que o crime é uma página que já virou:
— O passado já passou. Está tudo sossegado na minha vida.
Na delegacia. Dorinha Duval, ao lado do advogado Técio Lins e Silva, na 15ª DP: atriz só se apresentou dias após assassinato
Arquivo O Globo / Jorge Marinho 14/10/1980