
"Sonho meu, sonho meu/ Vai buscar quem mora longe, sonho meu/ Vai mostrar esta saudade, sonho meu/ Com a sua liberdade, sonho meu/ No meu céu a estrela-guia se perdeu".
Para quem conhece a vida e a obra da gigante Dona Ivone Lara, que completaria 100 anos nesta quarta-feira, sua canção mais famosa, "Sonho meu", pode ter sido inspirada nos anos de trabalho no Centro Psiquiátrico Nacional D. Pedro II, no Engenho de Dentro, Zona Norte do Rio, sob a supervisão de Nise da Silveira, médica responsável por revolucionar o tratamento de saúde mental do Brasil.
Dona Ivone Lara: Centenário tem shows, discos e músicas inéditas
Pouca gente sabe, mas antes de se tornar famosa com seus sambas, Dona Ivone Lara foi uma aguerrida profissional de saúde mental. Orfã de pai aos 2 anos e de mãe aos 16, Dona Ivone Lara cursou Enfermagem na Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (Unirio) e, aos 25 anos, deu início a sua carreira na instituição no Engenho de Dentro, onde trabalhou por 30 anos. Filha de uma família musical (seu pai tocava violão de sete cordas, e a mãe cantava), ela já compunha e também cantava desde muito jovem. Mas só se dedicou inteiramente ao samba depois de se aposentar do serviço público, em 1977.

Carregando nos ombros o legado da resistência negra e do pioneirismo das mulheres no mercado de trabalho, a carioca transitava entre o universo da classe média vivida na faculdade e a realidade de uma famíla pobre, negra e, portanto, marginalizada. Por isso, agrarrou-se à vaga conseguida no Serviço Nacional de Doenças Mentais, logo que saiu da vida acadêmica.
Seis anos após se formar em Enfermagem, em meados dos anos 1940, ela se tornou uma das primeiras estudantes de Serviço Social no Brasil e, em seguida, especializou-se em terapia ocupacional, no curso ministrado por Nise da Silveira, com quem atuou também na Casa das Palmeiras, em Botafogo, na Zona Sul.
Homenagem: Artista fará intervenções na cidade em memória de Dona Ivone
Naquele período, o tratamento de doentes mentais no Brasil ainda era muito voltado para a internação, com o uso de terapias agressivas como eletrochoques e lobotomia. Muitos pacientes eram abandonados pelas famílias em institutos como aquele em que Ivone Lara trabalhava. A psiquiatra Nise da Silveira, porém, foi responsável por quebrar essa tradição, incentivamento o engajamento de doentes com atividades culturais e a aproximação de seus pacientes com a família. Muitas das práticas iniciadas pela médica são referência no tratamento mental até hoje.

Foi nesse ponto da revolução promovida por Silveira, hoje considerada o marco inicial da luta antimanicomial, que o trabalho da sambista se mostrou de suma importância. Atuando como visitadora social em nome do hospital, Dona Ivone Lara tinha, muitas vezes, a tarefa de percorrer centenas de quilômetros em território fluminense, ou até em outros estados do Brasil, atrás das famílas de pacientes internados, com o objetivo de reunir os parentes com os assistidos.
Sambas-enredo: Série explica músicas que escolas cantarão na Sapucaí
No instituto na Zona Norte, Ivone atuava em oficinas de música com internos e eventos nos quais promovia a aproximação de doentes com pais, mães, avós, irmãos etc. Há quem diga que esse trabalho, realizado até hoje na unidade de saúde, plantou a semente do bloco de carnaval Loucura Suburbana, que, tradicionalmente, sai do prédio, hoje chamado de Instituto Municipal Nise da Silveira, e percorre as ruas do Engenho de Dentro, misturando pacientes, familiares, profissionais de saúde e moradores do bairro.

