DOM FRANCISCO
A. C. DIB
Coisa de cristão-novo. Fugindo do Velho Mundo, notadamente, das perseguições religiosas, judeus, convertidos ‒ na marra ‒ ao cristianismo, aportavam na acolhedora e segura costa brasileira, e abandonavam seus velhos e tradicionais nomes hebraicos, adotando nomes ‒ um pouco mais vulgares ‒ de animais e plantas. Daí os Leitões, Carneiros, Pintos, Oliveiras, Baratas, Leões, Coelhos, Pereiras e tantos outros mais, que pululam em nossa fauna e flora social. Não sei dizer se era este o caso de Francisco Rolla.
Conheci Francisco por intermédio de meus tios maternos, Calixto e Salim. Tal como meus tios, Francisco era um apaixonado por pescarias. Goianão, bonachão, boa prosa e muito espirituoso, grande, corpulento e claro, simples e de aspecto interiorano, mas muito antenado, Francisco era, para meus tios, bom amigo e companheiro de pescarias. Frequentou, por algum tempo, a casa de minha avó, na companhia de sua mulher, Dona Alzira, e de suas simpáticas filhas.
Certa feita, fui convidado a acompanhar meus tios em uma daquelas memoráveis pescarias. Não comungava do prazer que sentiam em dar banho na minhoca ‒ conforme diziam ‒, mas me via atraído pela expectativa de viver aventuras, além de amar o convívio íntimo com nossa rica natureza. Rumei, então, juntamente com meu pai, meus tios e meu primo Sérgio, para a esperada aventura pesqueira, não sem antes fazer-me acompanhar de boa leitura: como não sou de perder tempo, levei comigo A Descoberta da América Pelos Turcos, do imortal Jorge Amado.
Seguimos, então, para Cabeceiras de Goiás, minúsculo município goiano, próximo a Formosa. Ali, Tio Salim ‒ que cultivava, além do amor à pescaria, sérias pretensões políticas ‒, comprou um lote, construindo nele boa casa de alvenaria, próxima a caudaloso rio. Autêntico Clube do Bolinha, éramos, ao todo, sete cavalheiros, incluindo, aí, o indispensável Francisco Rolla.
Após um ou dois dias, ali passados, fomos visitados pelo vizinho, da casa ao lado da nossa. Dito vizinho ‒ a situação se fazia evidente ‒ também pertencia a um homogêneo grupo masculino de pescadores-de-fim-de-semana. Ruidosos os companheiros, eis que ouviam músicas sertanejas em volume máximo, acompanhadas de gargalhadas, de espalhafatosa conversação e de muita cerveja e cachaça.
O forasteiro bateu, sendo calorosamente acolhido. Era um homem de meia-idade, magricela, senhor de fartos bigodes muito bem cuidados, articulado, extrovertido e falastrão. Contou-nos, animadamente, fatos notáveis de suas pescarias, e de suas aventuras sexuais ‒ sempre relacionadas às proveitosas pescarias ‒, fazendo acompanhar as divertidas histórias, do respectivo gestual.
Antes, porém, ao adentrar o recinto, se deparou com o corpanzil de Francisco, que o recebeu, estendendo-lhe a calejada mão. O visitante, sem titubear, apertou, com honestidade, a mão de Francisco, dizendo:
‒ Muito prazer! José Gallo! Gallo com dois éles ‒ falou, em tom professoral, e com o indicador da outra mão apontando para cima. ‒ Segundo pesquisa que, há muito, me dei ao trabalho de promover, meu Gallo nada tem a ver com a ave, o galináceo. Gallo é um nome de origem britânica, que significa tempestade, ventania.
Francisco, sacudindo lentamente, e apertando com força, a mão do convidado, respondeu:
‒ O prazer é meu! Francisco Rolla! Rolla com dois éles! Segundo pesquisa que, há muito, me dei ao trabalho de promover, minha Rolla tem tudo a ver com a ave, a pomba. Rolla é um nome de origem portuguesa, que se refere a numerosas espécies de aves da família dos columbídeos, semelhantes aos pombos, porém menores.
‒ Vá tomar banho! ‒ disse, de chofre, José Gallo, puxando a mão que apertava à de Francisco, e fazendo, com a outra mão, gesto indicando, ao interlocutor, a ação de ir, de seguir adiante.
Francisco, num só impulso, enfiou a mão no bolso, e sacou a carteira de identidade, exibindo, e apontando com o dedo, o nome ali grafado.
José Gallo, tomando a carteira em suas mãos, aproximou-a do rosto, mirando-a clinicamente. Depois, devolvendo o documento a Francisco, falou, embasbacado:
‒ Cacete! Mas que baita coincidência!
Passados já vários anos ‒ há muito, não tenho notícias do amigo Chico Rolla ‒, nunca olvidei a hilária passagem.