Fez de mim objeto descartável
Que usou, abusou e jogou fora
Todo mundo sonha com um grande amor
Com alguém que o ame de verdade
Hoje lembro sem um pingo de saudade
E até com um tanto de torpor
Como fui inocente e credor
Enganando-me com o teu olhar outrora
Pois a alma apaixonada ignora
E ignorei o quanto eras miserável
Fez de mim objeto descartável
Que usou, abusou e jogou fora
Eu pensei reconhecer em um olhar
O haver verdade em alguém
E em ti acreditei ver tanto bem
Que desejei mais ainda te amar
Hoje sei, depois de todo o penar
Que ao semblante o fingimento se incorpora
E fingida é o que fostes cada hora
Me tornando um idiota memorável
Fez de mim objeto descartável
Que usou, abusou e jogou fora
Ainda assim, depois do que me aprontou
Sei que agora faz carinha de inocente
E com esse jeito engana a muita gente
Assim como igualmente me enganou
Se faz vítima daquele a quem vitimou
Mas quem te apoia ainda terá a sua hora
Pois uma cobra sempre morde sem demora
E tu és cobra, venenosa, incurável
Fez de mim objeto descartável
Que usou, abusou e jogou fora
Quando mais precisastes de alguém
Lá estive para poder te apoiar
Te dizendo o que sonhavas escutar
E jamais te foi dito por ninguém
Eu te fiz muito mais que muito bem
E me pagaste como declaro agora
Com ingratidão e mentira por penhora
Numa atitude totalmente inexplicável
Fez de mim objeto descartável
Que usou, abusou e jogou fora
Eu me culpo, me arrependo, me castigo
Por ter sido o que para ti me fiz ser
O homem que toda mulher deseja ter
Carinhoso, indulgente, grande amigo
Pois em troca, tu fostes para comigo
Traiçoeira e maldosa, indo embora
Tão logo tua dor teve melhora
E meu amor então tornou-se dispensável
Fez de mim objeto descartável
Que usou, abusou e jogou fora
Mas bem sei que a Justiça não falhará
E do mal que me fizestes terás troco
Teu coração também será feito de louco
Por alguém que, sorrindo, te enganará
E, nesse dia, você se lembrará
Que este é o saldo de tua troca de outrora
Mal por mal, também levarás um fora
E chorarás, dizendo em pranto lastimável:
Fez de mim objeto descartável
Que usou, abusou e jogou fora.
* * *
Carlos Severiano Cavalcanti glosando o mote:
Revelei o meu filme preto-e-branco,
O retrato exibiu sertanidade.
No Nordeste, saí a cavalgar,
percorri o sobejo das restingas,
contornei as arestas das caatingas
sob o sol, procurei fotografar
a paisagem sem vida do lugar,
na intenção de mostrar a fealdade
do sertão quando traz a soledade
e borrifa de suor o meu potranco.
Revelei o meu filme preto-e-branco,
o retrato exibiu sertanidade.
Xiquexique sem flor junto a facheiros,
galhos secos torcidos nos arbustos,
vegetais tortuosos e combustos
espetando as encostas dos outeiros.
Carrascais entorroam tabuleiros
das coroas furentas, as de-frade
que vicejam naquela imensidade
quando o sol cobre a rocha em cada flanco.
Revelei o meu filme preto-e-branco,
o retrato exibiu sertanidade.
Legiões de famintos retirantes
fugitivos do fogo da coivara,
passageiros de muitos paus-de-arara,
buscam vidas em terras mais distantes.
Os que ficam são trôpegos errantes,
filhos órfãos da mãe calamidade,
empurrados à marginalidade
na vivência cruel desse atravanco.
Revelei o meu filme preto-e-branco,
o retrato exibiu sertanidade.
Já cansado de ver triste paisagem,
desisti de esporar o meu cavalo,
preferi buscar água pra lavá-lo,
procurando abrandar nossa viagem.
Entretanto, faltou-nos a coragem,
o cansaço tirou-me a agilidade,
o potranco a mostrar debilidade,
percebi que o cavalo estava manco.
Revelei o meu filme preto-e-branco,
o retrato exibiu sertanidade.
Meu cavalo cansou. Faltou ração.
Acabaram-se os filmes que comprei,
todos eles eu mesmo revelei,
registrei a crueza do sertão.
No meu álbum deixei a coleção
tradutora da dor e da orfandade,
com perfis exibindo obesidade,
nessa vida de rude solavanco.
Revelei o meu filme preto-e-branco,
o retrato exibiu sertanidade.
E naquele ambiente de mormaço,
encerrei na metade o meu roteiro,
procurei descansar num juazeiro,
coloquei a cabeça sobre o braço,
relaxei e dormi, pois o cansaço
reduziu-me o vigor pela metade.
Despertei temeroso da cidade
e sentei-me a pensar, sobre um barranco.
Revelei o meu filme preto-e-branco,
o retrato exibiu sertanidade.