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O músico Bob Nickson ganha a vida no grito: consegue diárias de R$ 150 para chamar clientes em frente a uma loja na Ceilândia
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Jogada para longe dos centros urbanos, a população da periferia criou uma economia dinâmica e criativa, um saber coletivo de como sobreviver às condições de exploração da força de trabalho no Brasil. Obrigada a lidar com a ineficiência do Estado, essa parcela de brasileiros, que configura a enorme maioria, fortaleceu redes de solidariedade ao promover soluções locais para as dificuldades da vida. Na vanguarda das relações sociais e econômicas, o arranjo peculiar desse mercado acabou por descortinar a riqueza da periferia.
A cada crise, as taxas de desemprego disparam e atingem em cheio a população periférica, que parte para o empreendedorismo como alternativa de sobrevivência. É nesse contexto que negócios informais, formação de coletivos, foco na vocação regional e uma busca incessante pela independência do centro urbano marcam a economia do entorno de Brasília. A partir de hoje, o Correio publica uma série em quatro capítulos que pretende mostrar um pouco da riqueza da periferia do Distrito Federal, onde apenas 230 mil dos mais de 3 milhões de habitantes moram no Plano Piloto.
A história começa na urbanização do país, explica a professora aposentada de Arquitetura e Urbanismo da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo (FAU) da Universidade de São Paulo, Erminia Maricato. “O Brasil entra no século 20 com 10% da população urbana e termina com 80% das pessoas nas cidades”, diz. A migração é pela busca de emprego. “A mão de obra se oferece muito barata e ganha apenas para comer e gastar com transporte. Sem recursos, se instala como pode nas periferias.”
Quando o desemprego aumenta, entra a criatividade. No Brasil de hoje, são mais de 13,1 milhões de desempregados. Não à toa, a informalidade e os benefícios sociais representam 40% dos ganhos dos domicílios brasileiros para bancar despesas com alimentação, saúde, habitação e transporte, segundo a consultoria britânica Kantar WorldPanel.
Para o professor da Escola de Administração de Empresas de São Paulo da Fundação Getulio Vargas (FGV Eaesp) Edgard Barki, o empreendedorismo se fortaleceu nas populações periféricas. “Há um fator circunstancial por conta da crise e do aumento do desemprego. Empreender é uma questão de necessidade para gerar renda”, ressalta.
Com a maior população do DF, com 490 mil habitantes, Ceilândia abriga a segunda maior favela do país, o Sol Nascente, onde moram 95 mil pessoas. Apesar da fama de perigosa, a comunidade luta para vencer o estigma na base da economia informal e solidária. Elisângela Amaral, 40 anos, presidente da Associação dos Microempresários do Sol Nascente e do Pôr do Sol, conta que a batalha é pela formalização dos pequenos negócios. “Nem a associação é formal ainda, mas estamos regularizando para dar mais ao pessoal”, diz.
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Sem trabalho e com o filho desempregado, Edilene apostou num food truck no Sol Nascente
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SolidariedadeSem trabalho e ao ver a dificuldade do filho Clailton Alves de Souza, 30, em se recolocar no mercado, Edilene Alves, 51, apostou em um food truck. Os dois vendem cachorro-quente, sucos, pastéis e caldo de cana. Decidiram manter o negócio no Sol Nascente, para atender a população local com preços acessíveis: por R$ 5 é possível comprar um combo. Os dois conseguem tirar R$ 3 mil de renda por mês.
Para a professora Erminia, a cidade tem uma função social, porque é uma construção coletiva. “A solidariedade é fundamental, já que não se tem um Estado solidário”, explica. Foi para ajudar a família que Sandra Carmem Alves da Silva, 42, descobriu sua vocação. Com a morte da irmã, precisou cuidar dos três sobrinhos. Hoje, é responsável por mais de 20 crianças numa creche no Sol Nascente. “Cobro entre R$ 100 e R$ 150 mensais para dar banho, comida e cuidar”, assinala.
Outra característica comum na periferia é a união de forças. Sem emprego, o marceneiro Cristiano Pereira de Matos, 38, abriu uma empresa e hoje garante trabalho para ex-colegas que ficaram desempregados. Todos moram no Sol Nascente, mas os móveis planejados que produzem ganharam clientela por todo o DF. Os projetos variam de R$ 4 mil a R$ 6 mil. “Quando o volume de trabalho aumenta, contrato mais colegas que precisam de trabalho”, conta. Além da diária de R$ 100 para marceneiro e R$ 50 para ajudante, Cristiano paga o almoço dos colaboradores.
Na periferia, a venda porta a porta é mais eficiente, o boca a boca é mais relevante, sublinha Barki, da FGV Eaesp. O músico Bob Nickson, 54, que o diga: ganha a vida no grito. Enquanto batalha para gravar seus discos e fazer shows, faz bicos como locutor e consegue diárias de até R$ 150 para chamar clientes em frente a um comércio no centro de Ceilândia.