Dira Paes ouve a pergunta “tudo bem?”, mas, de forma bem-humorada, trata logo de corrigi-la. “Agora é: ‘Como você está’, né? E ainda tem a resposta clássica: ‘Na medida do possível’”. Mas a atriz vai bem, sim, apesar da pandemia que alterou (para alguns muito mais, outros menos) a vida de todo o planeta. Em 2020, há uma lista de acontecimentos para celebrar, a começar pelos 35 anos de carreira. Estreou,em 1985, com a produção cinematográfica britânica “Floresta das Esmeraldas”, filmada quando era ainda adolescente. De lá para cá, foram mais de 15 obras na TV, 43 filmes (entre curtas, longas e dublagens) e seis peças teatrais. A carreira no cinema, inclusive, já lhe rendeu, em 2017, o troféu Oscarito, homenagem do Festival de Gramado, um dos mais importantes do país, pelo conjunto da obra. “Até eu me impressiono. É muito tempo”, diz a atriz, de 52 anos. “Percebi que cada novo trabalho imprimia algo na minha personalidade. Sinto-me uma atriz brasileira, que esteve quase no país inteiro e me identifico com a pluralidade dos personagens que desempenhei. Não foi e nem é fácil, é preciso persistir e tem que ser muito apaixonada pelo que faz.”
A pandemia trouxe a oportunidade de revisitar um dos personagens que mais marcou a sua carreira e que incrementou o realismo de seu vasto currículo: Celeste, uma sobrevivente da violência doméstica, da novela “Fina estampa”, cuja reprise terminou em setembro. A saga da mulher agredida pelo marido marcou o país em 2011, na primeira exibição, e fez ainda mais sentido de ser discutida novamente. Desde o início do isolamento, os números desse tipo de crime só crescem. Houve um aumento de 35% durante a pandemia, segundo dados divulgados em julho pelo Ministério Público do Rio de Janeiro.
Intérprete de Griselda, a protagonista da novela e responsável por ajudar Celeste a ganhar independência financeira, Lília Cabral relembra o trabalho da dupla. “Dira era a pessoa ideal para fazer aquele personagem porque ela representa muitas mulheres. Tem uma voz que fala pelas brasileiras. Não me admira ter feito tão bem”, diz Lília, deixando escapar que não vê a hora de trabalhar com ela novamente. “Quando a gente passa a admirar mais, quer trabalhar mais também.”
Pelos números, dá para perceber que o exercício violento do patriarcado pouco mudou, mas Dira acredita que o público hoje tem mais repertório intelectual sobre o assunto. Boa parte da audiência sabe um pouco mais sobre os diversos tipos de abuso que podem acontecer num relacionamento, sejam eles físicos, psicológicos ou financeiros. “Agora, estamos começando a verbalizar com mais consciência. Temos entendimentos mais profundos, sabemos o que é uma relação abusiva, temos na boca essas palavras. Em 2011, não tínhamos. Conceitos foram criados, assim como mais ferramentas para lidar com eles.”
O assédio, recorrente também no trabalho, já foi experimentado por Dira e enfrentado de forma involuntária. “Tive experiências desagradáveis com diretores, assédios verbais, mas me defendi todas as vezes, instintivamente. Indo embora na hora, por exemplo. A violência nunca me travou. Ainda bem. Já aconteceu de estar voltando da escola, e um homem meter a mão em mim. Consegui virar o braço, e ele saiu correndo.”
O próprio ambiente artístico, que outrora naturalizava e encobria demonstrações de poder e subserviência, tem mudado, ainda que paulatinamente. A percepção é de quem está na lida há mais de três décadas. Ela acredita que, se antes era difícil compreender limites, agora eles aparecem mais demarcados. “Não tem mais tanto espaço para ego, para mau humor. Se você errou, peça desculpas, se possível, imediatamente. Estamos errando e aprendendo. Falo com muita gente como se tivesse conversando com o meu filho de 5 anos, ensinando o beabá. O princípio da cidadania, de não fazer com o outro o que não quer que façam com você, é uma coisa que já devia estar clara.”
O profissionalismo e o talento, juntos, lhe rendem convites “emocionantes”. O último foi para “Veneza”, filme dirigido por Miguel Falabella. Nele, ela interpreta Rita, uma prostituta que ajuda a cafetina Gringa (a atriz espanhola Carmen Maura, presente em diversas obras de Pedro Almodóvar) a encontrar seu grande amor. Apesar da ansiedade, a pandemia adiou a estreia para o início do ano que vem. “Por estar na TV continuamente, vinha fazendo só participações no cinema. Estava com saudade do início, meio e fim do processo. ‘Veneza’ veio de um telefonema do Miguel: ‘Tem um personagem que escrevi para você’. Respondi: ‘Nem quero ler, vou fazer’”, conta a atriz.
Falabella, por sua vez, confessa que queria trabalhar com a atriz há tempos. “Já namorava a Dira à distância. Ela transita entre o drama, a comédia, é uma patinadora. Vai aonde as outras pessoas dificilmente vão”, diz Miguel. Além deste trabalho, ela também poderá ser vista como uma mãe em busca do filho desaparecido no garimpo em “Pureza”, longa de Renato Barbieri, sem previsão de lançamento.
Se, por um lado, a pandemia atrasou a agenda de trabalhos, por outro começou a pavimentar um caminho que, até então, ela não pensava em trilhar. “O confinamento me despertou desejos de dirigir um filme. Sou casada com um diretor de fotografia (Pablo Baião, pai de seus dois filhos, Ignácio, de 12 anos, e Martin, de 5), é até pecado não fazer um longa com ele (risos). Tenho algumas ideias na manga.”
A paraense de Abaetetuba não dá detalhes sobre o que tem pensado. Quem sabe uma pitada de cultura amazônica? “Há uma subrepresentação da mulher indígena e de toda a comunidade. De alguma forma, o fato de eu ser uma cabocla, uma mulher que vem da Amazônia, faz com que muita gente se sinta retratada. Essas raízes estão na expressão que faço questão de exaltar. Amo ser de lá, acho chiquérrimo”, diz Dira.
Engajada na causa dos direitos humanos e indígenas desde o início dos anos 2000, a artista também é ativa na sustentabilidade — no discurso e nas ações, muito antes do papo virar recorrente. Há 22 anos, mora numa casa em que madeira de reflorestamento, energia solar, reaproveitamento de água e toda uma grande lista de atitudes verdes estão presentes. “Não é que eu queira parecer a pessoa super-mega-power sustentável, mas você tem que praticar. Passar a quarentena aqui parece ter justificado tudo.”
Desde março, ela está confinada nesse refúgio ao lado dos filhos e do marido, reorganizando e construindo outras dinâmicas. “As crianças pautaram o cotidiano, mas foi, para mim, um momento de reafirmação de valores. Quem não se afetou deixou um bonde muito interessante passar”, reflete. “O casamento fica intenso, mas é a ratificação do querer e do não querer. Você tem tempo de realinhar os pontos.”
Esse movimento não tem só a ver com o tempo disponível. Maturidade desempenha um grande papel na forma como se enfrenta esse tipo de situação, e Dira sabe que isso é algo a desfrutar aos 52. “O autoconhecimento é uma preciosidade que só o tempo dá. É impossível tê-lo antes”. Ao passo que a maternidade tardia (sua primeira gravidez aconteceu aos 39 anos e a segunda, aos 47) lhe despertou a juventude. “Tem gente com 50 que tem mais pique do que com 30. Não é uma questão de idade, é de estilo de vida. Na segunda gestação, fiquei uma adolescente. Minha carne era dura, não tinha uma celulite”, diz. “Cada gravidez, uma história. A primeira foi natural; na segunda, tive quatro abortos espontâneos e aí fizemos reprodução assistida. Desejei muito ter o segundo filho.”
Sem paranoias com vaidade, ela usou a quarentena para descansar do espelho. “Permiti que a natureza lidasse comigo. Tirei férias dos cuidados (estéticos). Tenho uma máscara a zelar, que não posso interferir. Quero ter um rosto transformado pelo tempo e sei que vou ganhar personagens maravilhosos.”
Ela também entende que o momento é de celebrar diversidade e aceitar novos padrões. “Dá vontade (de deixar o cabelo branco), só que não vou ficar bem ainda, sinceramente (risos). Mas tenho achado a Fafá de Belém muito linda. A Vera Holtz também. Mulheres modernas, né?”
Sobre menopausa, ela confessa ainda não sentir os efeitos do tempo. “As taxas hormonais não acusam esse momento. Minha referência de família é um climatério mais tardio. E acho que conversar sobre isso não é mais um tabu. Vou te dizer: temos que falar sobre tudo.”