DIA DO BOM VIZINHO
Acervo Google
Esta matéria deveria ter ido ao ar no dia 23 de dezembro de 2013, data consagrada na Folhinha como o Dia do Vizinho. Atropelada por outros assuntos mais prementes, como o Réveillon e o Dia de Reis, só hoje, 14.2.2014, é publicada, mas com a necessária explicação: na convivência social, todo dia do ano é também Dia do Bom Vizinho.
Isso posto, passemos aos fatos!
Em certa madrugada do mês de agosto de 2013, o morador do Ap. WWW, parede-e-meia com o nosso, o XXX, andou arrumando suas malas para uma viagem que aconteceria logo mais, e a movimentação, obviamente, provocou um pouco de barulho, mas nada que nos incomodasse do lado de cá.
No dia seguinte, fomos surpreendidos com esta Ocorrência registrada no Livro do Condomínio por inquilino, morador do Ap. YYY, embaixo do nosso:
“Senhora Síndica. Solicito sua intervenção junto aos moradores do Ap. XXX, no sentido de reduzirem seus barulhos intensos como derrubada muito ruidosa de objetos e arrastar de móveis. Isto ocorre principalmente nos fins de semana, a partir das 6h da manhã. Impossibilita descanso.”
Não satisfeita com isso a reclamante passou a interpelar-nos pessoalmente, dedo em riste, sem ao menos averiguar quem lhe causara tanto desconforto, o que me levou a registrar, no mesmo Livro, esta defesa:
“Brasília, DF, 17 de agosto de 2013.
Senhora Síndica,
– Deus te livre da praga do mau vizinho!
Esta era uma das rogativas do Cego Adriano, lá no sertão sul-maranhense, em meu tempo de menino, cada vez que recebia qualquer dádiva.
Já se vão mais de setenta anos. Na época, a criançada, que morava em casas não geminadas, cujos pais conviviam na mais perfeita harmonia com os moradores das redondezas, socorrendo-se, ajudando-se e, às vezes, sofrendo mutuamente, não compreendia bem o sentido das palavras do cego. Mas ele, cantador e cordelista, homem estudado e viajado, explicava-nos:
– Quando Deus andou no mundo, estando um dia à sombra duma figueira, onde a caravana havia feito alto para o descanso dos apóstolos, e vendo Cefas Simão sentado numa grande pedra, teria exclamado: “Levanta-te daí, Cefas Simão, porque, há duzentos mil anos, sentou-se nessa mesma pedra um mau vizinho!”
A narração me impressionou por demais. E, quando entrei para o Catecismo, ao aprender quais eram os Dez Mandamentos da Lei de Deus, acrescentei o 11º: Ser bom vizinho! Sob pena de, ao deixar a existência, ir padecer no fogo do inferno!
E venho cumprindo à risca esse preceito. Nos dois blocos de apartamento em que morei, na 416 Sul e neste, fui aprovado em meu comportamento gregário, o que comprovam os convites recebidos para ser síndico, tanto lá, quanto aqui.
Resido neste Bloco, com minha família, há 18 anos. Aqui, criamos nossas filhas, demos-lhes educação para conviver com a sociedade, em geral, e com os vizinhos, em particular. Hoje, temos duas moças formadas, bem orientadas na vida, exemplo para todos os pais de família de nossa Comunidade.
Este prédio não possui isolamento acústico, fazendo com que uma festinha de aniversário no Ap. AAA seja ouvida até no Ap. ZZZ. Aproximando-se um pouco mais, ouvem-se o bater duma porta, o fechar duma gaveta, a descarga dum vaso. A pequena distância, podem-se ouvir tapas e beijos e até gemidos e sussurros na hora do amor.
Os bons vizinhos – tais como nossa família – a tudo relevam, mesmo por empatia, pois o receptor de ruído de hoje pode ser o barulhento de amanhã. Isso é o que os americanos chamam de política da boa vizinhança.
A Moradora do Ap. YYY, em sua reclamação, motivo desta correspondência, poderia ter melhor averiguado a origem do barulho que a incomodou sem, açodadamente, identificar nosso apartamento como seu causador. Na verdade, o ruído foi originado em outra unidade, vez que seu morador estava arrumando as malas para viajar. E isso não durou por toda a noite. Daqui, ouvimos toda a operação, mas, adotando a empatia e a compassividade, ignoramos o fato, levando em conta, também, que tal morador é um dos mais silenciosos do prédio.
O desassossego da Moradora do Ap. YYY persiste, embora tenhamos adotado todas as providências para não a incomodar. Agora, suas recriminações já não mais se limitam às páginas deste livro. São-nos dirigidas pessoalmente.
E isso faz com que nos transformemos todos em vítimas de cruel paranoia. De um lado, nós, do XXX, tomando todas as precauções no sentido de preservar o bem-estar da Reclamante, patrulhando-nos 24 horas por dia, pisando em ovos, como se diz. Enquanto isso, do outro lado, a Reclamante parece – repare bem, eu disse parece – estar a policiar-nos, atenta a qualquer som que provenha de nosso lar até mesmo o de um flato mais forte descuidadamente escapulido.
Isso pode levar qualquer um à instabilidade emocional! Deus, no entanto, é maior, é Pai, e nos ajudará!
No intuito de solucionar o problema, sugiro a criação de uma Comissão de Moradores que passe, sem avisar-nos, uma noite no Ap. YYY, observando nosso comportamento, para depois emitir um laudo com sugestões que acataremos, contanto que não seja mudarmo-nos para outro local.
Não há erro sem solução, não há solução sem defeito e não há defeito que não possa a qualquer tempo ser corrigido.
O Correio Braziliense de hoje traz, em seu caderno Cidades, página inteira intitulada Meu Vizinho, Meu Irmão, enfatizando que “a convivência com quem mora na casa ou no apartamento ao lado, por vezes, transforma-se em um laço duradouro”. E conta três histórias de pessoas que descobriram, bem pertinho, amigos para a vida inteira.
Está em nós a possibilidade de sermos assim também!
Em nome da Boa Vizinhança, subscrevo-me,
Atenciosamente,
Proprietário e Morador do Apartamento XXX.”