Luís Guilherme Julião*
O dia é da garotada, mas a data é antiga. O “Dia de Festa da Criança”, comemorado no país a partir de 12 de outubro de 1925, foi proposto pelo deputado federal Galdino do Valle Filho e instituído pelo decreto 4.867, de 5 de novembro de 1924, pelo então presidente Arthur Bernardes, quando a capital ainda era o Rio de Janeiro, o país se chamava Estados Unidos do Brasil e a República era a do café com leite. No Brasil, a data coincide com o feriado em homenagem à padroeira do país, Nossa Senhora Aparecida, o que é um prato cheio para as programações especiais para a criançada e mais uma motivo para o incentivo ao consumo. Nas páginas do GLOBO, além das tradicionais bicicletas e bonecas, há anúncios de campeonato de videogame, “Branca de Neve, o musical”, "A discoteca do Chacrinha" e até plano de previdência privada da Capemi e salão de beleza, com um pedido: “Mamãe, no dia da criança eu quero ficar produzidíssima”.
Em seu livro "A origem de datas e festas", Marcelo Duarte afirma que a popularização da data aconteceu a partir de 1955, quando um diretor da fábrica de brinquedos Estrela lançou em outubro a "Semana do bebê robusto", que tinha como carro-chefe bonecos gorduchos de plástico. A partir de então, outras empresas passaram a usar a ocasião para vender seus produtos. Entretanto, O GLOBO já registrava, em 14 de outubro de 1944, as comemorações da “Semana da Criança” em Niterói. A reportagem diz que "a comissão estadual organizadora das festividades visitou, ontem, vários estabelecimentos e institutos que abrigam menores desvalidos”, onde foram realizados “jogos esportivos e outras diversões, e às crianças nelas internadas, foram distribuídos livros e brinquedos”.
Empresas de diferentes setores, não só de brinquedos ou doces, também aproveitavam a data para alavancar as vendas. Em 12 de outubro de 1978, por exemplo, a Capemi anunciava planos de previdência privada com o texto “Essas outras crianças”, psicografado pelo médium Chico Xavier, que atribui a autoria a Emmanuel, o espírito que, segundo ele, foi quem escreveu boa parte de suas obras. Em 1967, ano em que começou a ser exibida pela TV Globo, “A discoteca do Chacrinha” também anunciava uma programação especial para o Dia da Criança. O programa prometia “farta distribuição de balas e doces”, além de surpresas, brincadeiras, premiações de 500 mil cruzeiros e o troféu “poste de ouro” para o cachorro que fizesse os mais bonitos malabarismos.
Em 1978, as bicicletas Caloi brilhavam nos anúncios. No mesmo ano, o Instituto Guanabara, da área de educação, criticava a violência de alguns seriados americanos de sucesso, enquanto o Sesi, no ano seguinte, anunciava seus serviços nos campos da saúde, da educação e do lazer, que ajudavam “na formação da personalidade de muitos brasileiros de amanhã”. Em 1987, um cabeleireiro de Copacabana resolveu apostar na vaidade e publicou um anúncio que exibia fotos de meninas usando os cortes da moda com a frase: “Mamãe, no dia da criança eu quero ficar produzidíssima”. O texto complementava: "Satisfaça também a vaidade do seu filho ou filha. Leve-os ao Mattos Cabeleireiro".
Os jogos eletrônicos já dividiam espaço nos anúncios com as bonecas em 1991, e uma programação especial para as crianças, com direito a campeonato de videogames, era anunciada em 1995 pelo Barra Square Shopping Center, enquanto presentes tradicionais, como as bicicletas e os velocípedes, agora chamados de triciclos, podiam ser vistos em 1999. Aproveitando-se do feriado, em 2004, uma agência de viagens oferecia pacotes para a Praia da Ferradura, em Búzios, com gratuitadade para crianças de até 10 anos, enquanto em 2010, “Branca de Neve, o musical”, era apresentado no Dia da Criança no Canecão, em Botafogo.
Programações especiais também provocavam grande movimentação de pais e crianças, como em 1982, quando o Jardim Zoológico do Rio, na Quinta da Boa Vista, teve entrada gratuita e recebeu 20 mil visitantes. Mas foi no Dia da Criança de 1993 que a confusão tomou conta do lugar, quando 55 mil pessoas foram até lá para ver, entre outros animais, a então maior estrela do Zoo, o Macaco Tião, batendo recorde de público.
— Vim de Vaz Lobo especialmente para trazer minha filha, Isabel Cristina, de 7 anos, e ela ficaria muito frustrada se tivesse de voltar para casa sem conhecer os bichos e, principalmente, o Macaco Tião. E, afinal, essa é a forma de lazer mais barata para o povo — disse Maria Teixeira à reportagem do GLOBO, depois de enfrentar uma hora de fila na porta do Zoo, que não receberá o público neste ano, após a Justiça suspender, em 6 de outubro, a liminar que concedeu a gestão do Zoológico ao Grupo Cataratas. Em janeiro, o local já havia sido fechado pelo Ibama, devido às condições precárias em que os animais eram mantidos, tendo sido reaberto em março.
A data também já serviu para mostrar o espírito de solidariedade do carioca. Em 1993, enquanto milhares se aglomeravam na Quinta da Boa Vista, 112 meninos de rua participavam de um café da manhã promovido pela maratonista Maria Mendes Monteiro, em parceria com comerciantes da Rua Siqueira Campos, em Copacabana. O evento acontecia menos de três meses após a Chacina da Candelária, ocorrida em 23 de julho, quando policiais mataram oito moradores de rua, entre eles seis crianças, que dormiam em frente à Igreja da Candelária, no Centro do Rio.
Em outros países, a comemoração do Dia da Criança pode ter um fim declaradamente comercial, como na Argentina, em que é celebrado no terceiro domingo de agosto e surgiu a partir dos interesses da Câmara da Indústria do Brinquedo, ou para chamar a atenção para os cuidados com os jovens, como fez a Organização das Nações Unidas (ONU), que adotou o dia 20 de novembro como o Dia Universal da Criança. Foi nesta data, em 1959, que a Convenção sobre os Direitos das Crianças foi aprovada em assembleia geral e, no ano seguinte, oficializada como lei internacional. O documento é semelhante à Declaração Universal dos Direitos Humanos, mas adaptado às necessidades dos pequenos, prevendo direitos à alimentação, moradia, assistência médica, educação, lazer e prioridade no socorro em casos de catástrofes, por exemplo.
- com edição de Matilde Silveira