DESTRANCANDO A BOCA
Raimundo Floriano
Se eu fosse o Vili...
É psicológico. É compulsão irresistível.
Toda vez que embarco numa aeronave, este pensamento me assalta: “só não as aeromoças!” Se entro num bom restaurante, novamente a reflexão: “só não as garçonetes!” Mesmo ao visitar uma cozinha caseira, lá no meu sertão sul-maranhense, a ideia fixa se repete: “só não as empregadas!”
Mas se eu fosse o Vili...
O leitor deve estar estranhando o abuso dessas frases reticenciadas, mas eu me apresso em esclarecer, na forma adiante exposta.
No jornal Voz Ativa, de outubro de 2003, meu amigo Vili Santo Andersen, colega aposentado da Câmara dos Deputados, inspiradíssimo poeta, escreveu interessante crônica sobre a longevidade dos varões de sua família, revelando a periodicidade – 11 anos, em ordem decrescente – com que seus antepassados partiram para o Além.
Seu trisavô fizera a Grande Viagem aos 98 anos; seu bisavô, aos 87; seu avô, aos 76; seu pai, aos 65. Nessa sequência lógica, ele desencarnaria aos 54, ou seja, no dia 17 de junho de 1986.
Pois se eu fosse o Vili...
É isso mesmo, meus amigos, se eu fosse o Vili, se soubesse o dia exato em que se daria a minha defuncção – saída para a Eternidade –, naquela data, na condição de diabético e cardíaco, a quem tudo faz mal, lavaria a égua!
De início, tomaria um avião para o Nordeste e nele mandaria vir a outrora tão recusada bandeja. Bacon, queijo prato, ovo cozido, maionese e pão doce, tudo isso eu empurraria goela abaixo.
Ao desembarcar, procuraria almoçar num restaurante bem típico e pediria pitéus que há mais de duas décadas não ponho na boca: leitoa pururuca, paçoca, torresmo e goiabada com requeijão na sobremesa.
Falar em torresmo, meu amigo Zeiner Gontijo, viciado nesse petisco, vive me convidando para acompanhá-lo a um boteco que conhece no Venâncio 2000, onde se pode comê-lo desbragadamente, até que a banha escorra pelo beiço.
Já o meu fraterno Luiz Berto, Papa da Igreja Sertaneja, residente no Recife, esbalda-se, todos os sábados, no Mercado da Madalena, mandando pra dentro de si buchada de bode, rabada, dobradinha de porco e chouriço, tudo isso acompanhado de muita cerveja e pinga.
Mas voltemos ao assunto que acabo de interromper. É que não resisti ao impulso de mencionar esses dois grandes boca-destrancadores.
Na janta, como última refeição, comeria ovos fritos na manteiga, linguiça suína bem gordurosa e salgada, maria-isabel – arroz com carne seca, o carreteiro de minha terra – e, para rebater, um pedação de rapadura.
Se acaso lograsse me encontrar no meu Balsas Querido, acrescentaria ao pedido um frito bem azeitado de paca, tatu, cutia não!
Nada disso, por mais daninho que pareça, pouco se me dava, pois não alteraria a implacável sina.
Então, saciado, repleto e refestelado, esperaria, feliz, o inexorável desfecho. Isento de pecado capital, entregaria a alma ao Criador, livre daquela terrível síndrome da culpa que atormenta todos os que caem na tentação de infringir sua dieta.
Não há arrependimento maior neste mundo do que o da pessoa que não se contém e se entrega aos prazeres do bucho, comendo além da conta, principalmente quando quebra um regime.
E se, depois de tão insana voracidade, lograsse, a exemplo do amigo Vili – ora futuro longevo, com expectativa de alcançar, no mínimo, os 98 do trisavô –, interromper o funesto ciclo, driblando a Ceifadeira, só me restaria exultar de tanto prazer e contentamento e agradecer aos céus pela benevolência do perdão por minha reprovável incontinência alimentar.
E jamais retornaria aos saudosos locais onde cometera tais transgressões bulímicas.
Porque, meus prezados, para um cardiodiabético são proibidas, vetadas e interditas todas as comidas à disposição nos aviões, nos bons restaurantes e até nas cozinhas do meu sertão. Só não...
Comidas de restaurantes, aeronaves e cozinhas caseiras: quase tudo vedado aos cardiodiabéticos