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Raylene divide um barraco com o marido e os dois filhos: sonho da catadora de recicláveis é comprar um terreno
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Prédios luxuosos, hotéis, áreas de lazer e jardins bem cuidados compõem o cenário do coração de Brasília e das quadras mais nobres da capital federal. A beleza, no entanto, disputa a atenção de quem passa pelas ruas e percebe, ao longo das calçadas, diversos barracos de madeirite e lona. As ocupações ilegais estão por toda parte. Não se sabe, precisamente, quantas invasões existem no DF, porém, mais de 2 mil pessoas declararam-se em situação de rua, segundo a Secretaria de Desenvolvimento Social (Sedes). Desse total, 152 são crianças e 59, adolescentes.
Uma dessas áreas ocupadas é a 707/907 Norte, perto de um centro universitário particular. Ali, mais de 40 pessoas dividem o espaço e se acomodam em barracos, cercados por muriçocas e formigas. O local é monitorado diariamente pela equipe de abordagem social da Sedes. A pasta informa que os moradores daquele ponto não se consideram pessoas em situação de rua, mas catadores de materiais recicláveis.
Apenas na região central de Brasília, há cerca de outros 30 locais onde pessoas em situação de vulnerabilidade social se instalaram. A Subsecretaria de Proteção da Ordem Urbanística (DF Legal) monitora essas áreas e fiscaliza ocupações irregulares nas regiões administrativas. No entanto, a pasta não tem números precisos, pois “a maioria dos acampamentos são móveis, o que dificulta a contagem”.
Há oito meses, Raylene Nunes Alves, 30 anos, mora com o marido e os dois filhos, de 12 e 4 anos, em um barraco na 707/907 Norte. A mudança não foi uma opção. Ela vivia em outro barraco, em Planaltina de Goiás — a cerca de 55km de Brasília —, mas a coleta de materiais recicláveis ficava difícil no local. No DF, a catadora encontrou uma forma mais fácil de juntar os itens para revender e, assim, garantir a comida do dia. “Aqui, nossa rotina é sair de manhã para buscar latinha, voltar e, depois, sair à noite. Por mês, consigo tirar em torno de R$ 500”, calcula.
Ao lado do barraco de Raylene, há outros sete, onde moram mais de 15 pessoas, incluindo crianças e bebês. Outra estrutura serve como um banheiro improvisado, sem vaso sanitário e sem chuveiro. Do outro lado da pista, há mais construções à base de lona onde vivem cerca de 20 pessoas. A catadora nasceu em Brasília, mas os pais dela moram no Piauí. Ela chegou a alugar quitinetes e barracos para morar com o marido e as crianças, mas, pelas condições financeiras, acabava despejada pelos donos dos imóveis. O sonho de Raylene é conseguir juntar R$ 10 mil, para comprar um terreno em Planaltina (GO). “Até agora, consegui R$ 2 mil. Creio que, até o ano que vem, eu consiga esse dinheiro. Com R$ 500 (por mês) é difícil, mas, quando alguém doa alimentos, ajuda a economizar. Quem não quer ter um lugar de conforto para ficar com os filhos?”, questiona.
Lar
A história de Brenda Pereira, 25, não é muito diferente. A jovem tem dois filhos — um de 8 anos e uma bebê de 7 meses — e conheceu Raylene em Planaltina (GO). As duas vieram juntas para Brasília, em busca de condições melhores de vida. Não muito longe da ocupação irregular onde as duas vivem, vê-se a outra realidade da capital federal: prédios luxuosos, centros comerciais e hotéis. “Meus filhos não sabem o que é shopping. Na verdade, nem saem de cima desse papelão. O lazer deles é esse, mas nos acostumamos. Aqui, é uma dando força para a outra”, comentou Brenda.
Além das dificuldades, a família lida com derrubadas promovidas por órgãos públicos. “É frequente. A última tem três meses. Mas vou fazer o quê? Eles viram as costas e construímos de novo. Aqui, não recebemos visita de ninguém do governo nem opção para sair dessa situação. Não somos criminosos nem usuários de drogas. Somos pessoas honestas que não têm um lar”, completou a jovem. A DF Legal, por outro lado, informou que retira “apenas materiais inservíveis”, que não apreende pertences pessoais e que todas as ações da subsecretaria só ocorrem após trabalho prévio da Sedes.
Medidas
Para o professor de ciência política da Universidade de Brasília (UnB) Thiago Trindade, as ocupações irregulares estão associadas à falta de políticas públicas voltadas à moradia. “O acesso à terra é uma questão que nunca foi resolvida no Brasil. Temos um problema estrutural, que afeta a dinâmica da vida no campo e na cidade. Além disso, temos ausência quase total de uma política urbana seriamente implementada pelos governos. Desenvolvemos programas de política habitacional para a população de baixa renda, mas não resolvemos o problema, porque essas habitações, em larga medida, são construídas nas periferias das grandes cidades”, analisou.
O especialista acredita que mais pessoas ocupam pontos no Plano Piloto pelo fato de a área ser mais populosa e por oferecer mais “oportunidades”. “Temos uma área nobre. Se a pessoa que mora nessas ocupações tem comércio ambulante, ele vende mais. Se é catadora, consegue arrecadar mais latinhas, porque há mais consumo. A concentração da propriedade fundiária associada à falta de política urbana e habitacional vai acarretar em invasões”, ponderou.
Questionada sobre as ações implementadas para coibir as ocupações, a Sedes informou que oferece passagens para as pessoas que desejam retornar às cidades de origem, benefícios eventuais e inclusão no Cadastro Único (CadÚnico). A pasta acrescentou que apresenta serviços socioassistenciais, programas e benefícios para as famílias, incluindo vagas de acolhimento institucional nas 46 unidades sob gestão da secretaria. “A Sedes não pode retirar uma pessoa em situação de rua sem que ela manifeste interesse em ir para as unidades de acolhimentos”, ressaltou o órgão distrital, em nota.
Indicadores
A vulnerabilidade social não está presente só entre os que não têm uma casa para morar. Estudo produzido pela Secretaria de Desenvolvimento Urbano e Habitação (Seduh) e pela Companhia de Planejamento do Distrito Federal (Codeplan) mostra que, das 33 regiões administrativas do DF, Estrutural e Sol Nascente são as mais prejudicadas. Os dados constam no Índice de Vulnerabilidade Social (IVS), indicador que avalia as condições da população: quanto maior o indicador, maior a fragilidade social do local. As duas cidades tiveram resultado de 0,72 e 0,6, respectivamente.
O primeiro indicador analisado pelo estudo avalia fatores relacionados aos domicílios e arredores, como acesso a saneamento básico; tempo de deslocamento para o trabalho; condição viária; e ambiência urbana. Nesse quesito, Estrutural e Sol Nascente atingiram 0,69 e 0,64 pontos, respectivamente, seguidos por Fercal (0,5) e Planaltina (0,4). As regiões com melhores resultados foram Cruzeiro (0,03) e Sudoeste/Octogonal (0).
O estudo analisa, ainda, a necessidade de provimento de moradias para atender à demanda habitacional da população, bem como a inadequação de domicílios relacionada a especificidades que prejudicam a qualidade de vida. A Estrutural volta a aparecer em primeiro lugar nesse ponto, com indicador de 0,63, seguida pelo Riacho Fundo (0,53). Lago Sul (0,03) e Águas Claras (0,01) foram as mais bem avaliadas nesse aspecto.