DELEGADO SHAKESPEARIANO
A. C. DIB
O causo se passa em Manaus, na época áurea da borracha, princípio do Século XX, ou mais exatamente no célebre Teatro Amazonas.
O majestoso teatro, símbolo máximo do glorioso ciclo da borracha − que fez de Manaus notória e poderosa cidade brasileira −, foi inaugurado em 1896. Seus azulejos, importados de Portugal, convivem com peças – escadarias, corrimões, lustres e demais luminárias e outros adornos mais – trazidas da Itália. O egrégio teatro foi palco de grandes encenações dramáticas – majoritariamente francesas −, de memoráveis espetáculos e da apresentação de balés e de grandes orquestras sinfônicas. Todos – atores, tenores, músicos, bailarinos e seus espetáculos –, em regra, vinham da Europa diretamente para Manaus, para apresentação no Teatro Amazonas, sem passar por Rio ou por São Paulo.
Por essa época, meu avô Frutuoso, vivendo a grande aventura amazonense, conseguiu o cobiçado cargo de “fiscal do Teatro Amazonas”, o que lhe facultava assistir de graça as peças e demais espetáculos exibidos no suntuoso templo das artes. Presenciou, então, ali no teatro, bizarras e divertidas histórias, sendo uma delas a que narramos aqui.
Doutor Honorato Galhardo, delegado de polícia de Manaus, era um apaixonado pelo teatro. Cadeira cativa – rente ao palco – nas principais apresentações, o amor do policial pela arte era fato mui conhecido de todos os seus amigos.
Amâncio Pacífico, diretor teatral, sabedor da paixão do delegado pelas artes dramáticas, e devendo-lhe alguns favores, resolveu homenageá-lo. Bajulador que era, convidou o investigador a atuar em uma de suas peças. Ofereceu-lhe, então, uma modestíssima pontinha, em peça que iria estrear por aqueles dias. Sabia, confiante, que a ligeira participação não exigiria muito do bisonho ator de primeira viagem.
Honorato Galhardo, sensibilizado e, profundamente, honrado, aceitou de imediato o inusitado convite. Jamais havia encenado peça alguma, nem mesmo na escola. Homem de humilde origem, de pouco verniz, viu-se obrigado a trabalhar desde infante, lutando, aguerrido, pela sobrevivência. Aquilo para ele foi o coroar de uma incontida relação de amor com a beleza e a majestade do teatro.
O diretor Amâncio entregou-lhe o texto da peça, definindo seu papel. Doutor Galhardo comprometeu-se a decorar sua fala. Dedicado, estudou cuidadosamente o texto, ensaiando seu papel sozinho, frente ao espelho.
Aproximando-se a esperada estreia, Amâncio convocou o novato para o ensaio geral.
− Ensaio?! Dispensável! Estudei com afinco e com muito carinho meu papel, diretor. Modéstia à parte, não necessito ensaiar. No dia da estreia brilharei tanto que ofuscarei o ator principal! – disse com orgulho.
Chegando, então, o esperado dia, o delegado Galhardo, trajado com vestes do século XVII – botas, luvas, chapéu com plumas e de amplas abas largas, capa e espada na cinta −, era um dos mais empolgados e ansiosos.
De prontidão por trás das cortinas, no calor da encenação, sentiu tocarem seu ombro. Era o contrarregra, sussurrando-lhe ao ouvido:
− Doutor delegado, essa é a sua deixa! Pode entrar em cena!
Honorato Galhardo adentrou o palco, marchando com virilidade. Postando-se no meio do palco e perfilando-se, declamou tonitruante:
− Entra, tira o chapéu e faz uma mesura. Coloca o chapéu, puxa a espada da bainha até a metade, recolocando-a de novo na bainha. Faz novo cumprimento e sai! – bradou, encarando corajosamente a plateia.
Proferiu, assim, a tal “fala” e ali permaneceu parado, estático, majestático, a mirar altivamente sua plateia.
Os demais atores, frente ao inusitado da situação, vacilaram, parecendo atônitos e perdidos.
A plateia, apercebendo-se da gafe do improvisado ator, pôs-se a vaiar. E as vaias, gargalhadas e palmas, que começaram tímidas, foram crescendo em intensidade. Quando os demais atores – despertando do transe que lhes gelou, momentaneamente, os movimentos − se dispuseram a proferir suas falas, já era tarde: a balbúrdia era geral, enchendo por completo a ampla sala de espetáculos. E Honorato Galhardo ali permanecia, mudo e estático, tal qual estátua carnavalesca.
A direção não teve outro recurso: lançou-se mão do famigerado gancho, que, sem que as mãos que o operam aparecessem em cena, adentrou o palco, saindo lateralmente do pano, envolveu e fisgou o desastrado ator e o puxou, bruscamente, para trás das cortinas.
O teatro veio abaixo em ruidosos apupos, gritos e sonoras gargalhadas.