Foi meu primeiro amigo morto pelo coronavírus. Tinha 72 anos, mas parecia um menino pela maneira como jogava o corpo de um jeito meio desengonçado, pelo cabelo penteado com os dedos e principalmente por carregar no rosto um sorriso constante, tornado mais simpático ainda porque os dentões de cima eram ligeiramente separados. Lembrava um dos desenhos engraçados que fazia para as crianças. Daniel Azulay morreu sexta-feira passada.
A última vez que nos vimos dá a impressão de ter sido há séculos, mas foi apenas em dezembro ou novembro do ano passado. Foi com certeza em outra civilização, uma felicidade típica do tempo em que os amigos estavam liberados para se encontrar, em seguida apertarem as mãos e bem próximos um do outro trocarem ideias sem máscaras. Era um acontecimento comum naquele ano de 2019 AC (antes do coronavírus).
Daniel Azulay tinha duas salas atulhadas de memórias em Copacabana, uma montanha de livros, revistas, cartazes, estampas Eucalol, álbuns de figurinhas, coleções de O Gibi, e queria dar uma organizada naquela quinquilharia toda, fazer sabia-se lá o quê com tamanha preciosidade de papéis, alguns desenhos originais de Nássara, Fortuna, Millôr, Jaguar e outros deuses das artes gráficas nacionais. Era um museu caótico, nostalgias que educaram sua sensibilidade de artista excepcional. Azulay pretendia entender o material que tinha, conceituar, filtrar, arrumar e em seguida dispor a coleção ao público – foi aí que a gente se viu pela última vez.
Desde o começo desse pesadelo mundial, a vida dos amigos tem sido filtrada pelo movimento de mensagens no WhatsApp. Na primeira semana, elas eram sobre a euforia de estar em casa, todo mundo autorizado a ver sem culpa as séries da Netflix. Na segunda semana, chegaram os vídeos divertidos de alguém que se dizia fazendo um cruzeiro (cruzando da sala para a cozinha) ou jogando frescobol com o vizinho pela janela dos apartamentos. Na terceira onda, semana passada, a vida real baixou no aplicativo e a brincadeira acabou. Os amigos começaram a noticiar seus parentes internados. A morte, antes apenas um número sobre a tragédia na Itália e Espanha, estava nas vizinhanças – e foi aí que o zap deu a notícia do Azulay.
A morte de um amigo que se vai sem despedidas, sem o velório necessário, o caixão lacrado, é uma das maneiras de o vírus definir a crueldade de seu método e assombrar o futuro. Como serão as amizades? Como elas circularão pela cidade depois de sua passagem nefasta?
Antes de ser um desenhista de sucesso na TV (“algodão doce pra vocês”, era como se despedia na Turma do Lambe Lambe), Daniel Azulay fez parte nos anos 1970 do ranking dos dez melhores jogadores de tênis do Rio. Um dos seus orgulhos e curtição era ser sócio do sofisticado Country Club, em Ipanema, não pela grana - mas pela condição de atleta. A última vez que o vi foi lá.
Para conversar sobre a memorabilia ajuntada nas salas de Copacabana, almoçamos algumas vezes no final de 2019 AC na varanda do clube. Era um dos paraísos mais charmosos da civilização carioca - até que o coronavírus também passou por ali, penetra entre os convidados de uma festa, e com sua foice de contaminações em massa desfez o encantamento.
Nesta quarta semana as notícias pelo WhatsApp devem ser piores e, com inimigo tão cruel, difíceis de imaginar. De certo, a saudade do amigo divertido, garotão aos 72, e a esperança de sempre. Algodão doce para todos.