Distanciamento, palavra de ordem nos dias de hoje, não combina com a rotina de companhias de dança. Desde que eclodiu a pandemia, há pouco mais de um ano, trupes como o mineiro Grupo Corpo, a companhia carioca de Deborah Colker e os corpos de baile dos teatros municipais de Rio e São Paulo se desdobram para não perder o passo. Depois de interromper atividades e investir em ensaios virtuais, algumas das principais companhias de dança do país já retomam o trabalho de maneira presencial.
Além de máscaras e muito álcool gel nas salas de ensaio, o que se vê também é o investimento em novos formatos de espetáculo, com mais solos e duos em cena, para diminuir um pouco o contato físico entre os bailarinos. Será assim, por exemplo, na nova coreografia do Grupo Corpo, que, depois de dar uma pausa nas atividades presenciais entre fevereiro e março devido à infecção por coronavírus de um dos seus bailarinos, retornou à sede em Belo Horizonte, na última segunda-feira, para prosseguir os ensaios de um novo trabalho, inédito, com trilha da dupla Palavra Cantada. Em contato, apenas casais de bailarinos que vivem juntos — os demais protagonizam solos, distanciados.
— Para não encher o palco, embarquei numa linguagem completamente diferente. Nosso novo espetáculo não tem nada a ver com as peças de dimensão operística que costumamos montar. Agora fazemos duos, muitas vezes com pessoas que não se tocam — adianta o coreógrafo Rodrigo Pederneiras. — Estávamos todos loucos para voltar, essa é a grande verdade. Nossa ideia é deixar algo pronto para não sermos pegos de surpresa quando os teatros reabrirem. Não dá para ficar com o corpo parado.
O desafio da retomada cuidadosa é ainda maior para companhias clássicas, com elencos numerosos. Em fevereiro, após um mês de ensaios intensos, os 34 dançarinos do Balé da Cidade de São Paulo apresentaram, com máscaras, duas coreografias inéditas para uma plateia com capacidade reduzida a 30%, no Teatro Municipal paulistano. Como no Corpo, apenas profissionais casados se tocavam em cena.
— Foi uma emoção sem tamanho. Depois veio a terceira onda da pandemia, e voltamos a ficar só no on-line, com aulas de balé e condicionamento físico — lamenta o coordenador artístico Raymundo Costa, que espera retornar às atividades presenciais em breve.
Baile de máscaras
Ficar parado não combina — e é inviável — para quem vive de dança. Entre idas e vindas, desde agosto de 2020 os 13 bailarinos da Deborah Colker Cia de Dança ensaiam presencialmente o espetáculo inédito “Cura”. No primeiros meses de trabalho, se alguém tossia ou pigarreava por trás da máscara, estabelecia-se certo desespero, e todos se submetiam a testes PCR. Hoje, a confiança mútua entre os dançarinos — e o fato de a maioria dos profissionais morarem juntos, num imóvel da companhia — arrefeceu o estado de pânico inicial, apesar dos cuidados permanentes. E faz com que eles só utilizem máscaras no tablado quando há um convidado no espaço, como aconteceu no dia em que O GLOBO acompanhou os ensaios. Ao longo de sete meses assim, apenas um deles contraiu Covid-19.
— Se não tivéssemos o “Cura”, não sei o que seria de nós. Ou era isso, ou a companhia acabava. A gente estava ferrado, com dinheiro emprestado. E precisávamos de um projeto em andamento para sustentar patrocínios. Então resolvemos começar a navegar como um velho marinheiro, que durante o nevoeiro leva o barco devagar, como na música de Paulinho da Viola — compara Deborah. — Se alguém tiver uma proposta sobre como fazer e ensaiar um espetáculo de dança sem contato físico, estou realmente aberta a sugestões.
“Cura”, que seria apresentado em Londres em janeiro — e ganharia o Theatro Municipal do Rio em junho —, segue sem previsão de estreia. A dificuldade de usar máscaras durante os ensaios (“A gente solta o ar e ele continua dentro de nós”, resume o bailarino Guilherme Andrade, de 19 anos) é parecida com a angústia de se dedicar a uma produção com perspectivas incertas.
Pronto para a estreia tão logo isso seja possível — em março, o grupo foi à Cidade das Artes, na Barra, para afiar a montagem no cenário de Gringo Cardia —, “Cura” pode remeter à pandemia, mas não é sobre isso. Gestada em 2018, a coreografia inspira-se na relação entre Deborah e o neto Theo, de 11 anos, portador de epidermólise bolhosa, doença congênita (e sem cura) que provoca feridas na pele ao menor atrito.
— Há uma solidariedade nessa dor que faz com que eu jamais desista da procura pela cura — explica Deborah, ressaltando que, mesmo com o futuro nebuloso, mantém o nível de exigência elevado com a trupe. — Todo dia, falo que o ensaio precisa ser melhor que o de ontem. Não dá para cravar datas de estreia, mas a gente tem que encontrar expectativas... Se não fosse assim, eu morreria.
Subo nesse palco
A falta de expectativa atrapalha o trabalho no Corpo de Baile do Teatro Municipal do Rio, que está cheio de planos para o retorno das atividades tête-à-tête, com solos e pas de deux que devem ser gravados para a exibição em streaming, como já vinha acontecendo esporadicamente em 2020. Por enquanto, porém, os bailarinos continuam apenas se dedicando a práticas de exercícios individuais em casa, com orientação de professores, por meio do Zoom.
Mas o palco do edifício histórico da Cinelândia não está vazio. Desde março, alunos entre 15 e 18 anos da Escola de Dança Maria Olenewa retomaram as aulas por lá. Todos seguem medidas rígidas criadas em parceria com a Fiocruz: os estudantes são obrigados a trocar de máscara quando chegam ao local, e só podem retirá-la para beber água.
— E, ainda assim, eles só podem tomar água em lugares próximos a janelas, sempre distanciados — frisa o diretor e regente Hélio Bejani. — Com os profissionais, nosso foco ainda é o fortalecimento em casa, para estarmos preparados para a volta. Antes disso, queremos ter um objetivo claro à vista, como uma estreia.