21 de abril de 2022 | 05h00
As comemorações do centenário da Semana de Arte Moderna de 22 incluem finalmente o lugar onde ela aconteceu, o Teatro Municipal, ocupado pela segunda vez em cem anos com a exposição Contramemória, dedicada a artistas que participaram da mostra, mas, principalmente, aos que ficaram fora dela (negros, índios). Com curadoria da historiadora e antropóloga Lilia Schwarcz, Jaime Lauriano e Pedro Meira Monteiro, a exposição, aberta até 5 de junho, traz tanto obras originais de artistas modernistas (Anita Malfatti, Di Cavalcanti, Tarsila do Amaral) como de contemporâneos, críticos ao sistema que facilitou o advento do modernismo entre nós e dificultou o acesso de artistas não caucasianos ao Olimpo da modernidade.
Contramemória é, assim, tanto um tributo como um ajuste de contas com o passado, promovendo o diálogo dos contemporâneos com os modernos por meio da arte. Ocupando o hall de entrada e o salão nobre do Municipal, a mostra recebeu 300 visitantes logo no primeiro dia, pessoas que jamais entraram no teatro. Foram recepcionados por obras de forte conteúdo crítico, como uma pintura de Adriana Varejão que faz referência ao movimento antropofágico de 1928. Em Convite III, obra de 2005, Varejão se apropria de uma histórica imagem de canibal de Hans Staden, que segura a cabeça da artista.
Outra imagem icônica, a de São Sebastião, mártir guerreiro retratado por Guignard e Portinari, ganha uma releitura do escultor Flávio Cerqueira, em que o santo muda de cor – é um pivete negro e tem o corpo cravejado de balas no lugar das flechas. Ao lado da obra, uma escultura em sabão, de Raphael Escobar, traz um pergunta incômoda: “Com quantos pobres se faz um rico?”
Como o prédio do Municipal é tombado, os curadores tiveram de pensar a exposição de forma tradicional: há mais telas, desenhos e esculturas do que instalações e vídeos. Mesmo assim, uma cobra de papel de 200 metros da artista indígena Daiara Tukano circulou pela escadaria do Municipal até encontrar seu lugar definitivo no segundo andar. O projeto original, segundo a curadora Lilia Schwarcz, era reunir as obras que estiveram expostas na Semana de 22, mas, na impossibilidade de conseguir tais peças, entrou no circuito o valioso acervo do Centro Cultural São Paulo. Vieram de lá obras de Anita, Tarsila e Flávio de Carvalho raramente vistas ou nunca exibidas.
Foi assim que Contramemória transformou-se numa mostra multiétnica e atemporal. Na falta de uma escultura de Brecheret, sua máscara mortuária, feita por sua aluna Elisabeth Nobiling (1902-1975), repousa ao lado do “túmulo antropofágico” do artista contemporâneo carioca Yhuri Cruz, de 32 anos – uma obra fiel ao que ele mesmo definiu como necropolítica. Na linha revisionista das presenças afrodiaspóricas de Cruz, Daniel Lannes fez uma releitura de uma clássica foto dos modernistas registrada num almoço em homenagem ao mecenas da Semana, Paulo Prado, em 1924. O título diz tudo: 17 Homens e um Segredo. O segredo é que Anita Malfatti não foi convidada. As mulheres ficaram de fora. Mas O Bastardo, artista da Baixada Fluminense, que hoje vive entre o Brasil e a França, se encarregou de dar o troco. Recriou a mesma foto histórica trocando Mário e Oswald de Andrade por negros e índios.
E, lembrando que os índios estão presentes em poucas obras dos modernistas – Macunaíma, de Mário de Andrade, é uma delas – o líder indígena Ailton Krenak e a artista Carmézia Emiliano, da etnia Macuxi, fazem referência a ele em suas obras. Carmézia pinta o monte Roraima, cuja origem os índios ingarikós creditam a Macunaíma. Outro artista indígena que lembra dele é Gustavo Caboco, o jovem Wapichana (32 anos) que fez um “antibatismo” de Macunaíma num trabalho que remete à tela O Batismo de Macunaíma, pintada em 1956 por Tarsila, quando ela já estava a milhas de distância da pintora modernista que foi.