15 de abril de 2022 | 05h00
No início dos anos 1950, a dramaturga e produtora Maria Clara Machado encomendou um auto de Natal ao poeta João Cabral de Melo Neto. Ela, porém, não ficou muito satisfeita com o resultado e decidiu não encená-lo. O trabalho, escrito entre 1954 e 1955, foi então publicado em livro no ano seguinte e se tornou um extraordinário sucesso de público, já ultrapassando 70 edições até hoje. E é esse Morte e Vida Severina, ainda vigoroso em seu formato e conteúdo, o musical que estreia nesta sexta, 15, no teatro do Tuca.
O local é simbólico: foi ali que, em 1965, o texto foi encenado pelo Teatro da Universidade Católica de São Paulo (Tuca), com direção de Silnei Siqueira e Roberto Freire e músicas compostas por um então iniciante chamado Chico Buarque de Holanda. O desafio foi grande: a escrita de João Cabral, marcada pelo estilo seco, cortante, materialista, além de revelar um desprezo ao enfeite e à beleza fácil, se tornou ao mesmo tempo um desafio e um triunfo para o grupo que, com o resultado, transformou aquela montagem em um clássico.
“De fato, João Cabral escolhe as palavras mais duras, mais secas, e a aparente simplicidade do texto não está ali para colorir nada”, observa Elias Andreato, diretor da versão que chega agora ao Tuca, com produção da Morente Forte. Com 13 atores e cinco músicos em cena, o espetáculo acompanha a trajetória de Severino (Dudu Galvão) ao longo do Rio Capiberibe, do sertão até o Recife.
Durante a jornada, ele se encontra diversas vezes com a Morte até que, desiludido e impotente, se rende àquela jornada inútil e pensa em suicídio – afinal, como ele, muitos outros padeceram com a miséria e o abandono. O fio de esperança surge com o nascimento de um bebê, uma criança-severina, que renova as esperanças de um espírito cansado.
Não se trata de um drama, pois o povo é resiliente, resistente”, comenta Andreato. “E acompanhar essa história agora se torna ainda mais significativo após a pandemia de covid, que fez com que a vida passasse a ter outro significado depois de a morte ter sido um assunto que dominou nossa rotina.”
Diretor que privilegia a palavra, participante de montagens memoráveis sobre figuras notáveis como Fernando Pessoa, Oscar Wilde e Rimbaud, Andreato organizou o espetáculo em função do poema de João Cabral, ou seja, sem grandes efeitos ou adereços. “Os versos são preciosos e necessitam do devido destaque. O elenco foi instruído a se concentrar no texto, que tem uma rica linguagem poética, mas não se esquece dos aspectos sociais e políticos.”
De fato, os versos são curtos (em geral com sete sílabas) e sonoros, quase musicais, lembrando a poesia de cordel e eficiente ao traduzir uma trajetória trágica marcada pela rápida finitude, que é bem resumida nos seguintes versos: “E se somos Severinos / iguais em tudo na vida, / morremos de morte igual, / mesma morte severina: / que é a morte de que se morre / de velhice antes dos trinta, / de emboscada antes dos vinte, / de fome um pouco por dia / (de fraqueza e de doença / é que a morte severina / ataca em qualquer idade, / e até de gente não nascida)”.
“Pôr as mãos no sagrado requer muito cuidado, respeito e escuta”, comenta o diretor musical Marco França. “Fui extremamente respeitoso a João Cabral e Chico Buarque, cujo trabalho ecoa livremente na peça. Fiz apenas alguns ajustes, diminuindo um pouco as características de auto de Natal ao criar melodias que amarram e dão continuidade melódica às cenas.”
Sua contribuição foi essencial: os lamentos e os aboios (cantos sem palavras entoados por vaqueiros ao conduzir o gado) discretamente introduzidos reforçam a dramaticidade sem cair na pieguice. “O que é muito importante pois, embora vivam na seca e passem fome, os personagens são seres resistentes”, observa Dudu França, que vive Severino.
Natural do Rio Grande do Norte, ele se apoiou em experiências familiares para compor seu papel. “Meus avós são do sertão e busquei na memória detalhes pequenos, como o prazer do raro contato com a água em uma região tão árida”, comenta. “E, como meus familiares, Severino não se curva, apesar de tanto sofrimento.”
Em seu primeiro papel como protagonista, França exibe vigor em seis solilóquios, que são um recurso dramático que consiste em verbalizar na primeira pessoa o que se passa na consciência de um personagem. Dono de uma potente voz, imprime sentimento no canto. “O aboio não pode ser bonito, afinado”, ensina. “A voz não pode ter beleza, mas potência para perfurar o ar.”
A nova montagem também será marcante por apresentar o último trabalho do artista plástico Elifas Andreato, que morreu no dia 29 de março. Irmão de Elias, ele criou um cenário sóbrio, cujo destaque é uma enorme bola alaranjada, que tanto pode ser o Sol como a Lua, mas ambos implacáveis em transmitir o calor insistente. A maquete criada artesanalmente por Elifas, com o esboço do cenário, estará em exposição na porta da sala de espetáculo, em sua homenagem.