CRÔNICA DE UMA SERESTA NATALINA BALSENSE
Raimundo Floriano
Noite enluarada no sertão brasileiro
Aconteceu há quase 54 anos, noite de 23 para 24 de dezembro de 1960, sexta-feira, antevéspera do Natal.
Numa cidade em que não havia televisão, e a iluminação pública apagava por volta das 22 horas, a opção noturna para o encontro da mocidade em férias se resumia nas festas dançantes que realizávamos no Clube Recreativo Balsense ou em alguma casa de família, com iluminação a petromax e música a cargo do conjunto de Martinho Mendes. A cota arrecadada entre os rapazes cobria todas as despesas.
Estávamos radiantes com a festa que realizaríamos no clube naquela noite, quando recebemos um balde de água fria: o bispo da Prelazia, Dom Diogo Parodi, proibira qualquer dança no período natalino, por ser uma época de recolhimento e orações, como afirmava. E não houve jeito de contornar o assunto. A presidência do clube caçou-nos a licença já concedida, o Martinho tirou o corpo fora, e nenhuma casa de família se atreveu a contrariar a ordem episcopal. Diante do impasse, resolvemos partir para uma serenata.
Marcamos o ponto de reunião no coreto – hoje inexistente – da Praça da Matriz e, enquanto aguardávamos a lua sair e a chegada dos seresteiros, demos início ao consumo de bebidas quentes – licor Perobina, cachaça Jararaca, conhaque São João de Barra, Martini, quinado Cinzano e rum Bacardi –, ao mesmo tempo em que entoávamos cantigas em altos decibéis, para acordar o pessoal da Casa Paroquial, verdadeira pirraça em desagravo.
Um dos seresteiros era o preto velho Fuçura, guarda municipal e vigia dos jardins da praça. Dávamo-lhe boas doses de pinga e mandávamos que ele gritasse bem alto DOM DIOGO!, porém ele, respeitoso por demais, repetia: PÃO DE OURO! Outro companheiro a chegar foi o Thucydides Miranda, filho da Jeruza, entrado na adolescência, mas todo metido a rapaz. Ele e o Fuçura ficaram responsáveis pelo transporte das garrafas sobressalentes – as cheias, evidentemente.
Pela meia-noite, a trupe estava completa: José Bernardino, Gonzaguinha, Antônio Pires, Cazuzinha, Aluizio Soares, Raimundo Chaves, Raimundo Solino, Arenaldo, Otaviano do Zé do Joca, Nonato do Souzinha, Mestre Rubens, Pedro Correia e João Batista, seu irmão, Luizão, Pedro Nilo, Fonsequinha, João Emigdio, Zé Farias, que chegara de Brasília em teco-teco fretado, além de mim no violão, meu irmão Afonso Celso na sanfona, Possidônio na flauta e Régis, novo morador balsense, no cavaquinho.
A casa escolhida para início da jornada foi a de Seu Araripe, na Rua Isaac Martins, por motivos óbvios: grande concentração de moças bonitas e dos sonhos de alguns. O próprio Araripe veio à porta, ofereceu-nos bebidas e, após nossos cânticos, ele e seu filho José, o Sampaio, incorporaram-se ao cortejo.
(É oportuno relembrar que a residência de Seu Araripe e Dona Tercília, sua mulher, era o ponto de reunião da juventude balsense em férias. Dançava-se à luz de candeeiros ou lamparinas, ao som dum rádio de pilha – foi ali que aprendi a dançar. Em noites de claridade lunar, dispunham-se, no terreiro em frente, num grande círculo, cadeiras arrecadadas na casa e na vizinhança, onde se realizavam diversas brincadeiras sertanejas, como a do anel, a da berlinda e a do amigo secreto, sempre sob a direção das filhas daquele querido e simpático casal cearense. Uma delas, por sinal, recém-nascida em 1960, participou, 18 anos mais tarde, do concurso Miss Brasil, representando o Estado do Ceará).
A seguir, cantamos na porta de Marica Rocha, Salomão Ahuad, Moisés Coelho, Chico Florentino, Doutor Gonzaga, Augusto Pires, Absalão da Maroca e, por solicitação de Seu Araripe, na de Dionel Souza, do Banco da Amazônia, grande cantor de modinhas, o qual também a nós se juntou. Seu ponto forte era a valsa Uma Grande Dor não se Esquece, de Ernani Campos e Antenógenes Silva, gravação de Carlos José e Gilberto Alves, que ele entoou uma porção de vezes durante o percurso, atendendo a pedidos:
Choro a lágrima fremente
O pranto cruciante
Que rola internamente
Choro a lágrima sentida
A lágrima dorida
Que verte o coração
Sinto o espinho da saudade
E sofro a realidade
Da grande ingratidão
E na imensidão da dor
Eu sofro só o meu amor
Menestrel apaixonado
Eu vivo desolado
Chorando a minha dor
Choro a lágrima dorida
A lágrima sentida
Que sai do coração
Sinto a dor que mora n'alma
A dor que não se acalma
A dor que eu não esqueço
Sofro, eu sofro e não mereço
A dura ingratidão
Que me devora o coração
Continuando a seresta, paramos na porta do Coronel Fonseca, Pedro Inácio, Odilon Botelho, Jocy Barbosa, Luiz Fonseca e Theodorico Fernandes, onde topamos com o Antônio José da Úrsula, munido de uma radiola a pilha, em seresta particular, com discos em que dominavam os nomes de Lindomar Castilhos, Agnaldo Timóteo e Waldick Soriano. Deixamo-lo no local, curtindo uma grande paixão, e seguimos até a próxima parada, a casa de Seu Silvério Sampaio.
Dali, seguimos para a casa de Dona Nemézia Pereira, que veio nos receber, abriu sua mercearia e nos abasteceu de bebidas quentes, cujo estoque estava quase a zero.
Nesse momento, baixou em Dionel a personalidade do Cabo Didi, ao qual passamos a obedecer, principalmente no que tangia ao consumo das quentes. Quando ele achava que era chegado o momento apropriado, cada um pegava sua garrafa e executava estas ordens sob seu comando:
– Atenção!
– Preparar! – Todos segurávamos a garrafa pelo gargalo.
– Apontar! – Encostávamos a boca da garrafa nos lábios.
– Fogo! – Nem preciso dizer.
Da porta de Dona Nemézia, fomos até a de Dona Belinha Coelho, que nos serviu tira-gostos de queijo e cujo marido, Tenente Pedro Segundo, também se juntou a nós. Mas antes, a pedido de Dona Belinha, cantamos a toada Luar do Sertão, melodia de João Pernambuco e letra do maranhense Catulo da Paixão Cearense, a música mais repetida naquela noite.
Apenas quem mora em locais onde não há iluminação elétrica pode avaliar a beleza duma noite enluarada. E foi nessa pureza sem poluição tecnológica que Catulo se inspirou para fazer sua mais bela poesia. Luar do Sertão é o Hino da Seresta Maranhense. Eis a parte mais conhecida:
Oh, que saudade do luar da minha terra
Lá na serra branquejando, folhas secas pelo chão
Este luar cá da cidade tão escuro
Não tem aquela saudade do luar lá do sertão
Não há, oh gente, oh não,
Luar como este do sertão!
Não há, oh gente, oh não,
Luar como este do sertão!
Se a lua nasce por detrás da verde mata
Mais parece um sol de prata prateando a solidão
A gente pega na viola que ponteia
E a canção é a lua cheia a nos nascer no coração
Não há, oh gente, oh não,
Luar como este do sertão!
Não há, oh gente, oh não,
Luar como este do sertão!
Coisa mais bela neste mundo não existe
Do que ouvir-se um galo triste, no sertão, se faz luar
Parece até que a alma da lua é que descanta
Escondida na garganta desse galo a soluçar
Não há, oh gente, oh não,
Luar como este do sertão!
Não há, oh gente, oh não,
Luar como este do sertão!
Ai, quem me dera que eu morresse lá na serra
Abraçado à minha terra e dormindo de uma vez
Ser enterrado numa grota pequenina
Onde à tarde a sururina chora a sua viuvez
Faziam parte de nosso repertório Noite Cheia de Estrelas, de Cândido das Neves, A Volta do Boêmio, de Adelino Moreira, Chão de Estrelas, de Orestes Barbosa e Sílvio Caldas, Noite Feliz, de Franz Gruber, versão brasileira de Mário Zan e Arlindo Pinto, Boas Festas, de Assis Valente, e outras canções no gênero consagradas.
Altas horas, próximo à porta de Justiniano Fonseca, onde íamos cantar, deparamos com o negro De Pau – assim era conhecido –, deitado numa calçada, dormindo de roncar e agarrado a seu violão, nessas alturas só com duas cordas. Era a terceira serenata daquela noite que, para o negão, se acabava ali.
Na mercearia de Zé Dué, reabastecemos o estoque de quentes.
Demais casas em cujas portas cantamos: Joaquim Coelho, Joca Rêgo, Tarcísio Moreira, Lourdes Pires, Constâncio Coelho, Omar Ribeiro, Salvador Coelho, Chico Valentim, Miriam Rocha, Rafael Sabonete, Antônio Sepúlveda, Luzia Félix, Emília Câmara, Santo Coelho, Edna Pires, Gesner Soares, Didácio Santos, Dolores Lima, Ritinha Pereira, Evísio Botelho, Iaiá Gomes, Naninha Cansanção, Mestre Carlos, Sinharinha Florentino, Maria Luísa Solino e Zé Marques.
Em cada parada, o por todos ansiado comando do Cabo Didi: Atenção! Preparar! Apontar! Fogo! A certa altura, demos com a falta do Thucydides, ao notarmos que ele repassara ao Fuçura as bebidas sob sua guarda. Mandamos procurá-lo, sendo ele encontrado na Rua do Zé Bento, escornado na calçada do Major Lisboa. Aí, descobrimos que, invariavelmente, ao ser comandado, também o garotão fazia fogo. Reanimado a troco de água fria na cara, foi conduzido à casa da Jeruza, e a ela entregue, para especiais cuidados maternais.
Última parada na seresta natalina
Quase raiando o dia, chegamos à porta de Seu Rosa Ribeiro e Dona Maria Bezerra, meus saudosos pais, onde, depois de cantarmos a Valsa da Despedida, de Robert Burns, versão de Braguinha e Alberto Ribeiro, a turma se dispersou, finalizando a seresta.
Na maioria das residências onde paramos, as meninas-objeto de nosso romantismo vieram à janela para ouvir-nos, sorrir-nos e, em muitos dos casos, acenar-nos com venturosas esperanças.
Os menestréis éramos quase todos nós. Meu carro-chefe seresteiro sempre foi a toada Rancho de Serra, de Herivelto Martins e Blecaute, gravada em 1956 pelo Trio de Ouro.
No dia seguinte, para que a população balsense identificasse as ruas por onde a seresta passou, bastava seguir a trilha de garrafas vazias deixadas pelo caminho.
Para vocês, duas das canções acima citadas:
Rancho da Serra, toada de Herivelto Martins e Blecaute, com Rolando Boldrin:
Luar do Sertão, toada de Catulo da Paixão Cearense e João Pernambuco, com Inezita Barroso:
Que delícia de texto! Embora um pouco mais nova, tb participei de muitas serenatas como essas, todas numa Balsas ainda sem luz(até às 22h) Lembro tb que já recebi uma serenata, em Balsas, feita com vitrola. O querido e saudoso Tio Raimundo Silva colocou o cabra pra correr.
Parabéns linda história! São momentos que a gente não esquece!
Nos cruzamos no aeroporto de Balsas,retornei a Balsas dia 25/12/59,seguindo direto pra ilha de Balsas,encontrar meu avô Manoel Botelho e D.Euridice onde ficamos alguns dias,retornando a Balsas para morar na casa na Praça Eloy Coelho,9 Onde fiquei até 1966 após concluir o Ginásio no Pio X