Quando a seleção brasileira chegar a Doha hoje, não terá demorado mais do que seis horas de viagem desde Turim, na Itália, onde o time treinou e pega o avião rumo ao país da Copa às 10h30. Tempo bem mais curto do que a primeira viagem de uma seleção do Brasil para a Copa, há 92 anos. Ainda que o primeiro Mundial, em 1930, tenha sido realizado no Uruguai —e que o time brasileiro, sem nenhum jogador que morava na Europa, tenha feito sua preparação no Rio de Janeiro — a viagem também começou na Itália.
Mas não, não havia nenhum atleta brasileiro perdido no porto de Gênova no dia 20 de junho daquele ano, quando o Conte Verde, suntuoso navio que levaria a seleção a Montevidéu partiu rumo à América do Sul. A embarcação saiu de lá carregando apenas a seleção da Romênia, mas com um roteiro essencial para que a competição fosse realizada.
Voos transatlânticos, na época, eram, além de caros, raros. Quatro seleções fizeram, então, um “fretadão”: da Itália, a embarcação seguiu para a França, onde subiram a bordo, além da seleção do país, um trio de árbitros, os dirigentes da Fifa, incluindo o presidente Jules Rimet e a taça, que levava o mesmo nome. Em Barcelona, Espanha, quem embarcou foram os belgas. Depois de algumas paradas para descanso em ilhas portuguesas e espanholas, o Conte Verde enfrentou o mar aberto por sete dias até chegar no Rio de Janeiro.
Treinos improvisados
Navegando pela costa brasileira com quatro das 13 seleções da Copa, chegou a Montevidéu no dia 4 de julho, depois de duas semanas de viagem e nove dias antes da abertura do Mundial, quando finalmente os jogadores puderem reencontrar a bola. As seleções improvisaram. Fotos da época mostram treinos físico no convés, usando cadeiras do navio para improvisar obstáculos.
O Conte Verde não deu muita sorte às seleções. Todas, incluindo a brasileira — com uma derrota para a Iugoslávia e uma vitória contra a Bolívia — foram eliminadas na primeira fase. O campeão foi o Uruguai, país-sede, após vencer o país vizinho, a Argentina, por 4 a 2 na final.
Outros dois navios levaram seleções ao Uruguai naquela época, com histórias pitorescas. O SS Florida foi contratado pela Iugoslávia e pelo Egito. A saída era de Marselha, na França, mas outro barco que levava os africanos atrasou e eles acabaram não chegando. Desistiram da Copa. Já o SS Munargo saiu de Veracruz, no México, com a seleção da casa, mas ao invés de rumar ao sul, foi para o norte. Deu a volta para buscar a seleção dos EUA.
No Conte Verde, a volta teve drama após a parada no Rio. Um jogador romeno, Alfred Feraru, foi diagnosticado com pneumonia no meio do Atlântico. Na parada final da embarcação, de novo em Gênova, ele ficou para receber tratamento em um sanatório, e não seguiu de trem até a Romênia, onde seus companheiros chegaram já desesperançosos de suas chances de sobrevivência.
Funeral para um vivo
O boato de sua morte se espalhou, e a fake news foi tão convincente que sua esposa (há fontes que dizem que foi sua mãe) organizou um velório. Os livros de História — talvez já fantasiados pelo tempo — contam que foi justamente na manhã de seu funeral que ele voltou para a casa, causando desmaios na família. Fato é que ele estava vivinho. Tanto que disputou as Olimpíadas de Inverno de 1936, em Berlim. Ficou em 13º lugar nas duplas na patinação artística.
Atracado em Xangai no dia da rendição da Itália aos Aliados em 1943, recebeu ordens para que fosse afundado para não cair na mão dos japoneses. Submerso em um local que impedia o tráfego no estaleiro, teve que ser levado à superfície novamente, num trabalho que demorou três meses. Dias depois, um bombardeio o afundou novamente, no mesmo local. Mais seis meses de labuta.
A seleção brasileira de 2022 pode fazer mais história no Catar do que a de 1930 fez no Uruguai. O avião fretado que carrega o time de Tite, mais rápido e moderno, dificilmente viverá as desventuras daquele primeiro navio.