Misto de andarilho e treinador das causas impossíveis, o francês Hervé Renard pode conduzir a maior zebra de um torneio de seleções — de novo. Hoje à frente da Arábia Saudita, que depende apenas de si contra o México, nesta quarta-feira, às 16h (de Brasília), para avançar às oitavas de final da Copa do Mundo do Catar, Renard tem uma carreira de peregrino por clubes e seleções de segunda linha, cujo ápice ocorreu há exatamente uma década, com o título da Copa Africana de Nações por Zâmbia.
Em 2012, Renard foi chamado de “louco” por prometer levar uma desacreditada Zâmbia às semifinais do torneio continental, segundo o treinador declarou em entrevista recente à revista “The Athletic”. Logo na estreia veio uma vitória sobre a favorita Senegal, por 2 a 1, coincidentemente o mesmo placar da surpresa imposta pelos sauditas à Argentina nesta Copa.
À época, já apareciam os métodos de motivação pouco ortodoxos do treinador francês, que viralizaram nesta Copa com o vídeo da bronca nos jogadores sauditas no intervalo contra a Argentina (assista abaixo).
— Na véspera da final, fomos à praia onde o avião tinha caído. Era uma obrigação nossa jogar pela memória dos que faleceram — disse Renard, cuja longa lista de métodos de motivação já foi narrada por outros jogadores com quem trabalhou:
— A pré-temporada com ele foi a mais dura que eu já fiz. Ele nos colocava para fazer o exercício de “prancha” por dois minutos, e eu tremia como um cachorro. Enquanto isso, ele ria, gritava e fazia a prancha por cinco minutos — relatou em 2018 ao jornal “The Guardian” o goleiro John Ruddy, comandado por Renard no Cambridge United, da quarta divisão inglesa, em 2004.
Renard aprontou de novo em 2015, levando a Costa do Marfim, enfraquecida sem o ídolo Drogba, a um novo título da Copa Africana. Em 2018, a seleção do Marrocos, dirigida por Renard, esteve a ponto de eliminar a Espanha na fase de grupos da Copa do Mundo, após dois jogos em que, apesar de derrotada, dominou Portugal e Irã. Acabou sofrendo um gol dos espanhóis nos acréscimos, graças a uma intervenção do VAR, que já havia feito os jogadores marroquinos e o próprio Renard perderem as estribeiras naquela Copa, e deixou a Rússia sem nenhuma vitória.
Mesmo com o resultado frustrante, Renard deixou de herança no Marrocos “achados” como o volante Amrabat -- hoje titular da seleção que briga pela liderança do Grupo F --, que tem ascendência marroquina mas vinha atuando pela base da Holanda até ser recrutado pelo treinador. Outra joia pinçada por Renard foi o atacante Amine Harit, que vinha atuando pelas seleções de base da França e tornou-se um dos principais nomes de Marrocos às vésperas do Mundial do Catar, até se lesionar dias e ser cortado antes da competição.
Contratado em 2019 para dirigir a seleção saudita, turbinada pelos investimentos da monarquia local no futebol, Renard buscou imprimir seu estilo na espinha dorsal que havia fracassado na Copa de 2018, formada majoritariamente por jogadores do Al-Hilal.
A combinação de jogadores entrosados, tempo para treinar — os sauditas passaram um mês nos Emirados Árabes se preparando para a Copa — e um técnico conhecido por cobrar intensidade e postura ofensiva deu resultado: a Arábia Saudita surpreendeu a Argentina com suas linhas altas na estreia, criou dificuldades para a Polônia e, se depender de Renard, vai para cima do México naquela que o francês classificou, ontem, como “a partida mais importante da carreira”. Considerando o histórico de Renard, esta não é uma afirmação qualquer.
O volante Al-Maliki, que disse que o discurso de Renard contra a Argentina fez os sauditas “comerem a grama” em busca da virada, está suspenso e desfalca a equipe contra o México. A seleção da Arábia Saudita também não terá na partida decisiva o meia e capitão Al-Faraj, cortado por lesão, e o lateral-esquerdo Al-Burayk, com problema muscular -- além do também lateral Al-Shahrani, titular na estreia, que precisou passar por cirurgia após um violento choque de cabeça.
Os sauditas já chegaram às oitavas de final da Copa do Mundo em 1994, mas nunca repetiram o desempenho no formato atual, com 32 seleções. Nas últimas três participações em Mundiais, a Arábia Saudita ganhou fama de seleção frágil e vítima de goleadas, como os 8 a 0 da Alemanha em 2002, os 4 a 0 da Ucrânia em 2006 e os 5 a 0 da Rússia em 2018.
No Catar, a seleção tem mostrado solidez com um meio-campo que, nos dois primeiros jogos, teve Al-Maliki postado na proteção à área, atrás de uma linha de quatro meias dinâmicos na recomposição defensiva e nas transições para o ataque. O camisa 10 Al-Dawasari, autor de um golaço contra a Argentina e que perdeu pênalti contra a Holanda, e o atacante Al-Shehiri são as principais esperanças de conduzir os sauditas não só à classificação na fase de grupos, mas a voos ainda mais altos em um eventual mata-mata.