RIO - A namorada que chega “atrasadinha” ao encontro. A mulher que briga ao ver o ex com uma outra, “match” do Tinder. A pessoa que vivia na farra e hoje, na fossa depois de perder o amor, nem se reconhece em seu desejo de não sair de casa. O sujeito que, maltratado pela mulher, diz a ela que agora vai “pegar todo mundo” e que talvez até a beije “numa balada qualquer” sem reconhecê-la. A amante que se culpa pensando na traída. Outra amante, mas esta torturada pelo ciúme. O cara que lamenta a perda da namorada por ter cedido a uma aventura. Outro que debocha de quem ostenta “Chandon” enquanto ele só precisa do “dom” pras suas conquistas. Aquela que quando desce na pista faz tremer o chão. A que bebe, liga, transa e se arrepende. O moleque que anuncia que vai pro Baile da Gaiola “ficar de marola”.
O painel de personagens exposto acima é bem conhecido por milhões de brasileiros. Em sertanejo, funk, pagode e mesmo rap, eles desfilam nas 20 músicas mais ouvidas no Brasil hoje — segundo levantamento referente ao mês de fevereiro solicitado pelo GLOBO a Youtube, Spotify, Deezer e Crowley.
Por trás da variedade de tipos encontrados nas canções (e dos cantores famosos que as interpretam), há dezenas de compositores — muitos deles recorrentes nas paradas de sucesso, apesar de anônimos para o grande público. Responsáveis por criar essas figuras e situações, são eles que tentamapontar, nesta reportagem, os caminhos para atingir os ouvidos e corações da massa.
Sem receita, com técnica
O primeiro item da receita, segundo os entrevistados é: não há receita. Mas há técnicas. Algumas bastante prosaicas, como explica Junior Gomes, autor que aparece com duas músicas entre as 20:
— Tento focar em frases que eu vejo as pessoas postando no Instagram, por hashtags. Fico caçando as que chamam a atenção. “Notificação preferida” (gravada por Zé Neto e Cristiano, está na lista de mais tocadas) , por exemplo, eu vi alguém postando e me chamou a atenção. Pensei: “Caraca, isso dá uma música”. Eu me inspiro no que o povo posta, porque são frases que já estão na cabeça das pessoas.
Outra da lista, “Quem me dera” (Anderson Valente/ Romim Mata/ Thalison/ Walber Cassio/ Xuxinha) parte do mesmo recurso, ao transformar em verso a frase-meme “Deus me livre, mas quem me dera”. Mas há quem entenda que esse método tem seus contras, como Everton Matos, autor de “Ciumeira” e “Passa mal” (ambas na lista). Ele assina as duas com Paulo Pires, Diego Ferrari, Ray Antônio, Guilherme Ferraz e Léo Sagga (combo de compositores da empresa Single Hits, que se propõe a ser uma fábrica de sucessos).
— Tem muita gente que vê tema na internet — diz Matos. — Mas o problema é que às vezes você chega com algo que todo mundo tá falando, leva pro cantor e descobre que já chegaram três músicas pra ele sobre o mesmo tema. Gosto mais de pegar frases como “a sorte dele é que ele beija bem”, que uma amiga nossa falou e que acabou gerando “Sorte que cê beija bem” (sucesso com Maiara e Maraisa) .
Bruno Caliman — autor de hits como “Camaro amarelo” e de duas canções das 20 mais tocadas hoje, “Cobaia” e “Péssimo negócio” — tem um método mais elaborado.
Graciliano e Luan Santana?
Caliman começou como compositor de jingles — chegava a cidades do interior da Bahia, compunha para os estabelecimentos locais e depois oferecia a eles suas músicas-propaganda (“Vivi disso por quatro anos”, lembra). Ele explica que a habilidade de fazer canções que “pegam” passa não só pela letra, mas pelos aspectos musicais:
— “Te esperando” (sucesso de Caliman na voz de Luan Santana) tinha um monte de acordes e dissonâncias. Mas lendo “Memórias do cárcere”, de Graciliano Ramos, percebi uma coisa. O livro tem uma parte inicial num ritmo chato, mas que depois você percebe o sentido daquilo. A primeira parte de “Te esperando” fala da vida tediosa da personagem, então refiz, pus uma melodia tediosa, repetitiva, em cima de dois acordes. E só no refrão vem o ponto de virada.
Umberto Tavares — parceiro de Jefferson Junior em “Terremoto” (dueto de Anitta e Kevinho que está no topo da lista) — também defende que arranjo e sonoridade podem ser até mais importantes do que a letra:
— O refrão de “Bang”, da Anitta, é um frase de sax. Era algo que eu percebi que estava rolando lá fora e achei que tinha tudo a ver com ela. Além disso, naquele momento o reaggaeton estava ganhando espaço no mundo, e ele fica entre 95 e 100 bpm (batidas por minuto) , bem mais lento que o funk, que é 130 bpm. Seguimos essa tendência e deu certo — lembra Tavares. — Já “Terremoto” foi feita pra Anitta e Kevinho cantarem juntos. Partimos dessa palavra, que tinha a ver com os dois, e fizemos a canção a partir daí.
Sensibilidade para perceber lacunas
A observação do mercado da música — seja as tendências internacionais, seja o comportamento do público do artista para quem se compõe — é comum a muitos dos arquitetos de hits. Autores de um dos maiores sucessos do Brasil hoje, “Jenifer”, o coletivo de compositores Big Jhows (formado por Junior Lobo, Thawan Alves, Thales Gui, Leo Sousa, Allef Rodrigues, João Palá, Fred Wilian e Junior Avellar) recorre até a estatísticas para definir seus temas. “Separada”, por exemplo, sucesso do grupo gravado por Maiara e Maraisa, foi inspirada em uma portagem sobre mulheres que cuidam dos filhos sozinhas.
Diego Barão, autor de “Atrasadinha” ao lado de Leo Brandão e Wynnie Nogueira, acredita que muitas vezes é importante identificar as tendências pra poder evitá-las:
— É bom ver onde estão as lacunas, o que não está sendo coberto. O mercado sempre quer algo novo.
Isso inclui a leitura da sociedade brasileira. Aparecem nos 20 hits códigos das redes sociais e suas implicações nas relações (“Notificação preferida”, “Status que eu não queria”), ao mesmo tempo em que o discurso da ostentação e da “inimiga” perde força.
— É fora de contexto hoje uma canção de uma mulher em competição com a outra. A batalha da fiel contra a amante (que fez sucesso no funk) hoje não teria sentido — acredita Umberto Tavares.
A rotina da composição não obedece a caprichos da inspiração. Os Big Jhows, por exemplo, trabalham com a meta de quatro músicas por dia. Vine Show — coautor de “Notificação preferida” (com Junior Gomes Thiago Alves e Samuel Alves) e “Tem o dom” (com Benicio Araujo e Jenner Melo) — resume:
— É uma linha de produção. O índice de acerto aumenta quando você tem mais material. Falam que estamos esquecendo o dom, mas vivo disso. Nos shows, vou para o meio do povo, ouvir a discussão dos namorados, as cantadinhas da balada. Costumam dizer: “você é um poeta”. Mas me considero mesmo um contador de histórias.