O pai da menina, o senegalês Mamour Sop Ndiaye, professor e chefe do departamento de Engenharia Elétrica do CEFET/RJ, decidiu que ela e a irmã de 8 anos, que também estuda no Franco Brasileiro, não iriam assistir às aulas, que continuam acontecendo à distância, enquanto a escola não tomasse alguma atitude para proteger Fatou. Na quarta-feira (20), ele teve uma reunião com a superintendência e a direção pedagógica do colégio, e foi informado que a instituição levou o caso ao Conselho Tutelar. Na última quinta-feira (21), ele e a menina passaram quatro horas na 9ª DP (Catete), onde fizeram registro de ocorrência, prestando depoimento. Agora, ele e a mulher decidiram tirá-la da instituição.
— A Fatou vai sair da escola. Imagina: você vai ficar num lugar em que seu colega quer te vender no Mercado Livre? — argumenta. — A minha luta contra o colégio e contra esses rapazes vai ser implacável. Até então, eu tinha preocupação com a imagem da escola. Não sou de cuspir no prato onde comi: ela tem história e amigos no colégio, sim. Mas, ao mesmo tempo, nós vamos lutar. Qualquer um que nasceu para ser racista vai preferir voltar para o útero de onde veio. Vamos usar todos os meios, nacionais e internacionais. Sem violência, mas os racistas serão desmascarados. Eu, como educador, tenho responsabilidade junto aos meus irmãos brasileiros para lutarmos para acabar com o racismo.
A escola não atendeu ao pedido de entrevista da reportagem de CELINA e enviou uma nota, a mesma publicada nas redes sociais (veja ao fim da reportagem). Durante conferência online na quinta-feira, um vídeo ao qual a reportagem teve acesso, a diretora do Franco Brasileiro, Celuta Reissmann, falou a alunos do ensino fundamental sobre o episódio, mas não mencionou a questão do racismo: “A gente está aqui numa missão um pouco triste, né? Porque é uma coisa que nós estamos muito, muito abalados, é uma coisa da rede social, fora da escola, e que agrediram nossos alunos, então nós estamos tomando as atitudes, estamos com advogados, mesmo não tendo sido dentro da escola. O que eu queria dizer para vocês, meninos, é que vocês têm que ter cuidado com as redes sociais. Vocês vão crescendo, vão se acostumando com as redes sociais, escrevem o que não devem escrever. Porque, se vocês ofendem nas redes sociais, isso é crime. É crime digital. Então vocês não podem, vocês têm que ter cuidado. Às vezes é uma brincadeira boba, às vezes é pela influência dos outros colegas, mas a gente tem que ter muito cuidado. E isso que eles fizeram foi muito feio, foi muito, assim, ruim para eles, para as meninas, que estão sofrendo muito, e para nós, que somos da escola, que nos envolvemos muito com o trabalho com vocês. Então tenham cuidado, e aí a gente realmente não pode, por mais que a gente goste dos alunos, neste momento a gente não pode abrir mão de estar junto com a justiça, tá? Obrigada.”
No ano passado, os pais de uma aluna do segundo ano do ensino fundamental da Escola Dinâmica de Ensino Moderno (Edem), então com 7 anos, resolveram tirar a filha — e sua irmã mais velha — do colégio depois de ela ter sofrido repetidas agressões racistas, inclusive físicas. Na época, eles divulgaram uma carta, que foi publicada na coluna de Ancelmo Gois, em que diziam, entre outras coisas: “Depois de tudo isso, nós não acreditamos mais na capacidade de vocês de colaborarem na formação da nossa menina. Por isso estamos tirando a nossa filha dessa escola.” Procurados pela reportagem, eles disseram não querer recordar o episódio traumático, assim como outras famílias de vítimas de racismo em escolas particulares que CELINA tentou entrevistar.
A profissional liberal Lia*, que topou conversar sob anonimato, viu sua filha, Juliana*, sofrer racismo ainda pequena em uma história que ganhou bastante publicidade. Depois de se ver sozinha, sem apoio de ninguém, acabou trocando a menina de colégio.Em duas outras instituições, a criança foi vítima de discriminação racial. Na terceira ocasião, ao ver que, mais uma vez, a instituição não sabia lidar com a questão, ela decidiu não comprar mais briga.
— Ficaram falando em apaziguamento, sendo que não era uma briga: foi uma agressão, houve uma vítima. Conversei com ela: “Minha filha, isso tudo é uma avalanche de racismo. Tem racismo aqui, aqui e aqui.” E a gente foi se curando em casa — conta. — Não acredito mais no sistema. No centro da proposta da escola, está o ensinar. Não dá para dizer que ela quer, mas não sabe como: se uma escola não sabe como ensinar, eu não sei quem eu posso esperar que saiba. Se eles não sabem, é porque eles não quiseram aprender. Professores que lecionam há décadas se habituaram a usar o meio online, mas não se habituaram a lidar com o racismo. O racismo tem 500 anos neste país. O meio online tem dez — aponta ela.
Mestre em Relações Étnico-Raciais pelo Cefet-RJ com especialização em Educação e Relações Étnico-Raciais pela Universidade Federal Fluminense, a pedagoga Viviane Angelo resolveu se aprofundar no tema há nove anos, depois de um episódio de racismo vivido por seu filho, na época com 5 anos, na escola particular em que ele estudava. A falta de habilidade do colégio para lidar com a situação fez com que ela própria buscasse se aprofundar em estudos na área. Viviane frisa que, em primeiro lugar, a História do Brasil precisa ser recontada.
— Sem mexer nessas feridas, fica muito difícil avançar nessa discussão. Porque nós conquistamos uma legislação que modificasse a LDB (Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional), que foi a Lei 10.639, inserindo a temática do negro no Brasil e a História da África. Ela é de 2003, e até hoje a gente vê uma dificuldade na institucionalização dessa lei. E essa dificuldade tem arcabouço cultural, porque a gente não tem essa perspectiva de leitura da História racial do país no nosso currículo formal. Eu me formei em Pedagogia e não tive, em momento algum, disciplina ou leitura de textos, nada que me preparasse para essa temática na educação. Num primeiro momento, a gente precisa conversar sobre currículo: ele precisa ser modificado para, desde as formações de professores, fazer essa reeducação das relações étnico-raciais. A formação continuada é a grande chave — defende.
A professora Patricia Corsino, da Faculdade de Educação da Universidade Federal do Rio de Janeiro, cita o texto “Educação após Auschwitz”, de Theodor Adorno:
— Ele fala que não pode ser uma educação só de acúmulo de conhecimento. Ela tem que sensibilizar para o outro também — observa. — Não conheço a escola, nem sei como são os pais desses alunos, então fica difícil dizer. Mas a gente tem um racismo estrutural na nossa sociedade, e ele vai ficando mais exacerbado nas elites. Você ainda tem aí, especialmente em alguns grupos sociais, esse lugar de classe dominante que vai além do preconceito. O que aconteceu com essa menina agora foi racismo mesmo, porque é você considerar o outro inferior, inclusive as palavras foram muito horríveis, desumanizando a pessoa.
Mensagem:'Vocês vão compreender a minha dor', escreve mãe da menina Fatou
Fatou garante que participou de várias discussões sobre racismo no colégio:
— Os professores sempre levaram esse debate para a sala de aula. Inclusive, sempre me deram destaque. Eu tive uma professora que me cedeu tempo de aula para eu fazer uma apresentação sobre História da África, por exemplo — recorda.
Ela comemora o apoio que tem recebido nas redes sociais (com a exposição do caso, pulou de 600 seguidores no Twitter para 22 mil) e dos outros alunos. Porém, conta que é a segunda vez que passa por uma situação grave de racismo por parte de colegas de turma:
— Uma vez, numa aula de francês, eu estava rindo de alguma coisa e um aluno desse mesmo grupo que falou essas atrocidades chegou e disse: “Volta para a África, para o seu ebola.” Foi em 2016, na época do surto da doença. A professora ouviu, testemunhou ao meu favor, mas o colégio não tomou nenhuma posição — lembra ela. — Agora, os agressores estão assistindo aula normalmente, sem nenhum empecilho. Já fui agredida durante a aula virtual. Eu me senti muito abandonada pela escola. No momento em que eu precisava desse apoio, não tive.