RIO — Enquanto portas se fecham e ruas se esvaziam para conter o avanço do coronavírus, janelas de todo o mundo abrem-se para fazer contato. Começou na Itália, com pessoas cantando nas sacadas, e crianças pendurando no parapeito desenhos para lembrar: “Tutto andrà bene!” (Tudo ficará bem!). Logo, vieram os aplausos aos profissionais de saúde saindo das ventanas espanholas. E iniciativas das mais variadas correram o planeta, casa por casa: de serenatas a aplausos, de acenos solidários a protestos políticos, como se viu no Brasil nos últimos dias. Em tempos de quarentena, a janela virou a nova rua.
Engenhosos e solidários
Em quarentena desde o início da semana, o filósofo Adauto Novaes, organizador do tradicional ciclo de conferências “Mutações”, lembra a prosa poética de Charles Baudelaire no livro “O spleen de Paris”, quando o autor francês escreve: “Aquele que olha de fora através de uma janela aberta jamais vê tantas coisas do que aquele que olha uma janela fechada. Não existe objeto mais profundo, mais misterioso, mais fecundo (...) que uma janela iluminada por uma chama...”
— Da mesma forma, há hoje (nessa interação social pelas janelas) uma flama contra o individualismo da sociedade — diz Novaes. — Vivemos, sim, uma mutação dos valores dominados pelos bens monetários. Esperamos que outros valores possam surgir a partir dessa crise. Mas não sei se é delírio de quem está confinado.
Sentimento parecido de esperança vem tomando a escritora inglesa Olivia Laing. Ela sabe bem o que é isolamento. Passou meses vivendo sozinha em Nova York para escrever os ensaios do seu elogiado “A cidade solitária: as aventuras na arte de estar sozinha”, de 2017, um livro sobre as dificuldades de se conectar com outras pessoas. Na obra, a janela aparece como um elemento-chave na solidão contemporânea: é nela que, em tempos normais, vemos as interações sociais dos outros, enquanto nos sentimos presos entre os vidros. Agora, nota Laing, o que podia ser gatilho de melancolia nos solitários serve para aquecer corações.
— No isolamento, a janela é menos uma tela e mais uma abertura, um espaço aberto que pode ser alcançado — diz a autora. — É tão comovente ver esses vídeos, em que as pessoas aparecem apoiando enfermeiras e médicos, celebrando, cantando. Humanos podem ser tão engenhosos e solidários às vezes. Acho que as pessoas estão encontrando maneiras muito criativas de se conectar.
Estamos tão acostumados à visão de nossas janelas que nem pensávamos a respeito. E quantos de nós nem sequer olhamos através delas nos últimos tempos? Ao descobrir a janela como um meio de comunicação, vemos seu potencial, mas também suas limitações.
— Percebemos que podemos fazer muitas coisas com as janelas: nos comunicar com o mundo, resistir, comemorar que estamos vivos ou conversar com os vizinhos — diz Sonia Montaño, professora e pesquisadora em Ciências da Comunicação na Universidade do Vale do Rio dos Sinos. — E isso é ainda mais importante se nos ensinar que todos os tipos de janela têm limitações. Quando esquecemos que elas são apenas um recorte, instauramos fronteiras, dualismos, totalitarismos. Uma janela fechada é o espaço do fascismo, do desejo de aniquilação do outro, mas uma janela aberta também não é, necessariamente, uma visão absoluta.
Ver e ser visto
Não à toa, os artistas renascentistas se utilizavam das janelas em seus primeiros retratos pictóricos, aproveitando o princípio da câmera obscura, como lembra o fotógrafo e cineasta Walter Carvalho, codiretor do documentário “Janela da alma” (2001), ao lado João Jardim. O retratado ficava na luz pelo lado de fora, enquanto o artista no interior transformava a imagem precária em obra-prima.
— Fotografar, aliás, é olhar pela janela da câmera — lembra ele. — Ou seja, o dentro é o fora. Da janela, eu vejo e sou visto. O que vejo é o que me olha. Da minha janela, eu alcanço o mundo.
Após dias de confinamento, o poeta e crítico gaúcho Eduardo Sterzi atingiu aquilo que considera seu “novo grau de loucura”: procurar megafones à venda na internet. Em tempos de quarentena e distanciamento social, porém, querer amplificar sua voz na janela talvez não possa mais ser considerado um exercício de excentricidade.
— A janela sempre foi uma espécie de limiar secundário entre os âmbitos público e privado — observa ele, que é professor de Literatura da Unicamp e autor de “Aleijão” (2009). — A porta é o limiar por excelência, aquele espaço pelo qual saímos ao mundo, enquanto a janela parece ter sido sempre um espaço de interiorização. Pela janela, mais do que olhar, espiamos o mundo. Mas, com o que estamos vivendo agora, algo mudou decisivamente na sua configuração. Ela passou a ser o espaço de exteriorização.