Lagarta “devorando” uma espiga de milho verde
Sentado numa ponta da velha calçada que dava acesso à latada da casa, enquanto eu limava o lume das enxadas e reforçava o encaixe do cabo na folha das ditas cujas, ao mesmo tempo que olhava meu avô João Buretama afiando o corte do machado numa pedra de amolar, eu conseguia, ao mesmo tempo, escutar naquele galho seco de catingueira, um bem-te-vi desfiando o seu canto triste que, naquela hora mais parecia um “agôuro” para algo de ruim acontecer.
Bem-te-vi! Bem-te-vi!
Estávamos – lembro bem! – na primeira semana do mês de março. Aquela primeira semana seria suficiente para brocar a roça e “coivarar” no aceiro da cerca o que capinávamos. Era para queimar, e depois de queimado misturar com folhas secas para fazermos o melhor adubo orgânico. O adubo seria misturado à terra, da qual faríamos as covas para o plantio das ramas de batata doce.
João Buretama, com o saber melhor que o ter, determinou:
– Zé, meu fio, aprepare essas ferramentas pra nóis começar roçar as premeiras linhas do roçado. O dia do milagroso São José tá se aproximano, e a chuva vai chegar cagraça de Deus!
Eram quatro enxadas. A responsabilidade da preparação era minha. Vovô ficava com o trabalho de amolar o machado e a foice, além de preparar uma rolha de sabugo de milho para a cabaça que serviria para levar água para o roçado.
O bem-te-vi parou de cantar. A noite chegou rápido. Vovó deixou as ocupações da cozinha, e veio acender o candeeiro e botar querosene nas lamparinas.
– Véia, onquetá o sabão prumode eu banhar? Perguntou vovô.
– Tá dento daquela cuia nim riba do girau da cozinha, meu véio! Respondeu vovó.
Arrumamos as ferramentas no local de sempre. Fomos nos preparar para o dicumê: cuscuz de milho feito no prato, acompanhando pedaços de carne de porco salgados e garapa de rapadura com limão espremido. Affffmaria!
A zoada dos chocalhos acompanhava desde cedo o despertar cantado pelo galo Fefé. Era mais um dia. Ou, era um dia que provavelmente seria diferente para nós.
Por volta das 7:00 hs qualquer um acreditaria que já era meio dia. O sol queimava a pele – mas o sertanejo parece nem ter pele, ou não estar muito preocupado com isso. Ferramentas no ombro, cabaça d´água à tiracolo e, caminho da roça. Foi assim no primeiro dia, no segundo e nos demais. Até o fim. Nada de chuva. Mas o tempo estava mudando, sim. Muito calor durante o dia e uma brisa suave durante a noite.
A lua. A lua apareceu no dia 17 de março. Trouxe um recado para o sertanejo – aquele que, com tempo bom ou ruim, vai continuar produzindo alimento para suprir a vontade e matar a fome de muitos.
Dia 18, véspera do dia de São José. A chuva caiu sem esperar pela noite. Vovó acendera os candeeiros e a besourada tentando se aquecer, aproveitava para produzir uma sinfonia que, Deus e a Natureza escutam perfeitamente.
Na manhã do dia seguinte, tão logo Fefé nos despertou e Vovó preparou o reforço matinal. O primeiro alimento – aquele que nos manteria acocorados plantando manivas de mandioca, amarrando e plantando ramas de batata doce e semeando milho.
Foi o dia inteiro daquele jeito. Na boquinha da noite, adispois do dicumê, a reza de agradecimento à São José que, mais uma vez atendendo nossas fervorosas orações, trouxe chuva para molhar a terra e nos permitir fazer a nossa parte na produção de alimentos.
Onze dias depois de semeado, o milho deu o ar da graça. Começava o milagre do nascimento. Um mês, e o milho crescendo. Dois meses e o milharal já apontava para os céus em agradecimento à Deus pela fartura.
A chuva ainda molhou a terra por alguns dias. Fez nascer as ramas de batatas e as manivas da mandioca começaram a brotar. O milho formava touceiras e fechava copas. Verdinho que doía na vista.
As bonecas com seus cabelos avermelhados começaram dar o ar da graça. Não demorou muito para as espigas completarem seus espaços e o milho amadurecer.
Eis que chegou o dia e a hora do “batismo” da fartura pelo homem da roça: ali naquelas paragens, a comemoração era feita comendo uma espiga de milho verde crua.
Parte de mim foi feita de casulo que transformou as lagartas em borboletas
Dois dias depois o castigo da Natureza para os incautos. Na ânsia de cumprir a missão e a tradição de comer a minha espiga de milho verde crua, comi também uma lagarta. Comi, não. Engoli uma lagarta.
Na hora de “cagar”, acredite, caguei borboletas!
Assim como se estivessem participando da “Revolução dos bichos” de George Orwell, o porco Parafuso e as galinhas que corriam atrás quando alguém “partia célere” para a moita no mato, ficaram se entreolhando desconfiadas e como se perguntassem umas às outras:
– Como isso pode acontecer – nosso manjá transformando em borboletas voadoras?
As borboletas se reproduziram num casulo fermentado