O mercado de combustíveis do Brasil, que está entre os seis maiores do mundo, perde quase R$ 23 bilhões por ano em fraudes. A cifra de R$ 7,2 bilhões em evasão fiscal é conhecida, mas a ela se somam R$ 15,7 bilhões em burlas quantitativas, com bombas adulteradas, e qualitativas, com misturas fora do padrão, que, além de provocarem danos aos veículos e prejuízos aos consumidores e ao erário, acabam com a concorrência. Este ano, a pandemia derrubou o consumo de gasolina e reduziu a fiscalização em 17%, porém, as irregularidades aumentaram. Segundo o Instituto Combustível Legal (ICL), as fraudes operacionais cresceram 4%, no país, de abril a julho de 2020, ante dezembro de 2019 a março de 2020.
O diretor do ICL, Carlo Faccio, explica que a entidade mapeou as várias irregularidades cometidas no setor, que é o maior em arrecadação do país, responsável por 6% do Produto Interno Bruto (PIB). “A primeira linha de atuação é contra as fraudes tributárias. São R$ 7,2 bilhões de sonegação e inadimplência. No etanol, há possibilidade de recolher metade do tributo na distribuição, o que provoca perda da eficiência na arrecadação”, conta.
O setor chama de barriga de aluguel uma das fraudes mais praticadas. “O termo é usado para empresas de fachada. São constituídas, mas não têm nada de ativos. Em geral, são empresas que comercializam apenas etanol sem passar pela distribuição. É só um ambiente para emitir nota”, explica. As diversas burlas tributárias no setor são responsáveis por uma dívida ativa de mais de R$ 60 bilhões. “Muito por conta dos devedores contumazes, que abrem uma empresa sem intenção de pagar impostos. Isso ocorre porque, até entrar, um processo administrativo demora cerca de três anos e, depois de aberto, mais um ou dois. Ou seja, nesses cinco ou seis anos de atuação, a empresa soma R$ 1 bilhão de dívida. Quando os órgãos vão cobrar, não existe mais”, diz. “Depois que a dívida é tipificada e refinanciada, o índice de recuperação é de menos de 1%.”
Se resolvidas, as fraudes tributárias poderiam mitigar o problema de caixa de muitos estados quebrados, uma vez que o setor de combustíveis é o que o mais arrecada, por meio do principal tributo estadual, o Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS). Para isso, no entanto, Faccio ressalta que seriam necessárias a simplificação tributária e as revisões na legislação, para que as penas sejam mais severas e punitivas. “O crime organizado atua em três linhas: armas, drogas e combustíveis, porque o setor garante a lavagem de dinheiro. No Brasil, mais de 200 postos são do crime organizado ou da milícia”, revela.
No tanque
Além dos crimes tributários, o setor ainda padece de fraudes operacionais, responsáveis por perdas anuais ainda maiores. Faccio lembra que são duas as principais burlas. “Na quantidade, quando a bomba é adulterada (serve menos do que mostra), e na qualidade, com misturas fora da conformidade, com álcool com mais água, metano e até nafta na gasolina”, assinala.
Segundo a Agência Nacional de Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis (ANP), responsável pela fiscalização dos postos e checagem da qualidade, no ano passado, apenas 3% do combustível comercializado no país apontaram irregularidades, a partir de um coletivo de 86.144 mostras. Em 2019, ainda conforme a ANP, foram consumidos 120 bilhões de litros de combustíveis, o que significa que 1,6 bilhão estava fora dos padrões. “Em setembro deste ano, coletamos 6.728 amostras, com 1,9% de não conformidade”, diz Francisco Nelson, superintendente de Fiscalização do Abastecimento da ANP.
O diretor do ICL esclarece, contudo, que o consumo caiu durante a pandemia, por isso os números da ANP apontam queda. “Também houve redução na fiscalização”, acrescenta Faccio. De fato, Nelson admite uma queda de 17% nas operações. Para comprovar as irregularidades, o ICL criou a figura do cliente misterioso, que percorre os postos do país fazendo levantamentos de qualidade e quantidade. Entre abril e julho deste ano, os levantamentos apontaram alta de 4% nas irregularidades (veja quadro ao lado). “Depois de constatada a fraude, o ICL aciona os órgãos competentes, assim atuamos como força-tarefa.”
O diretor aponta outras irregularidades. “Como 45% da gaso-lina são tributos, ao misturar com nafta, cuja tributação é de 18%, o fraudador leva grande vantagem. Há quem misture água no álcool anidro e venda como etanol hidratado. Diesel sem biodiesel e até metanol, que é substância proibida, é misturada”, elenca. “As revendas movimentam alto volume. Em 24 horas, o produto já foi consumido. Isso possibilita que os grandes centros urbanos sejam o ambiente perfeito para as fraudes”, afirma Faccio.
Por isso, as falcatruas são mais frequentes em estados como Rio de Janeiro, São Paulo e Paraná, embora ocorram por todo o país. “A pandemia juntou o ruim com o péssimo. Houve queda de consumo e redução de investimento em fiscalização, por restrição orçamentária e de pessoas nos órgãos fiscalizadores. À alta de 4% de aumento nas fraudes de qualidade e quantidade, vamos ter um salto nas tributárias, assim que o período for contabilizado”, estima o diretor.
Sem mágica
O presidente do Sindicato do Comércio Varejista de Combustíveis e de Lubrificantes do Distrito Federal (DF), Paulo Tavares, não tem números de Brasília. “Quando identificamos uma fraude, denunciamos, mas não conseguimos a divulgação da ANP sobre os dados locais. O fato é que não tem mágica no preço de gasolina. Quando é muito baixo pode indicar fraude”, diz.
Tavares considera a mudança promovida pela ANP na qualidade da gasolina um movimento positivo. “Com uma octanagem maior (gasolina mais pura), a tendência é ter menos fraude. Quanto maior a qualidade do produto, mais difícil fraudar”, explica. Brasília tem 320 postos, segundo o presidente do Sindicombustíveis. “Nosso sonho é a ANP vistoriar todos duas vezes por ano. Mas, isso não ocorre. Eles trabalham por amostragem. Porque os fraudadores praticam concorrência desleal e quebram os empresários corretos”, lamenta.
*Estagiário sob a supoervisão de Odail Figueiredo