COMANDANTE JOÃO CLÍMACO
Raimundo Floriano
João Clímaco da Silva - Acervo Noêmia Coelho da Silva
João Clímaco da Silva, o Tio Joãozinho, filho do Capitão Pedro José da Silva e de Isaura Maria de Sousa e Silva, nasceu na Fazenda Brejo, município de Floriano, no dia 30.03.1903, onde viviam do cultivo da terra generosa, da criação de gado, da extração da cera de carnaúba e de derivados do coco babaçu.
Irmão do meu pai, Emigdio Rosa e Silva, o Rosa Ribeiro, João Clímaco foi o penúltimo de uma grande prole de 16 irmãos, sendo considerado o caçula, vez que sua irmã mais nova, Maria, morreu ao nascer.
Na infância, João Clímaco se aventurava pelas trilhas da mata virgem, vadeando riachos, transpondo colinas, capturando aves com arapucas e alçapões, abatendo caças com mundéus e bodoques, por ele mesmo fabricados, e amansando burro brabo.
Levava essa maravilhosa e despreocupada existência sem atropelos, até que um dia seu irmão Fructuoso José da Silva, o Tio Fructo, regressando de Manaus-AM, sob influência das ideias progressistas advindas de sua permanência naquele principal centro cultural do Brasil no Ciclo da Borracha, persuadiu seus pais a mudarem-se para Floriano, objetivando a educação dos filhos menores. Para o Joãozinho, acabou-se o que era doce!
Em Floriano, ainda na adolescência, João Clímaco tornou-se reservista e, logo depois, ingressou na Marinha Mercante, na qual permaneceu até o dia de sua aposentadoria, cumprindo rapidamente estágios que foram de marinheiro a comandante.
Tinha ele a alma inquieta dos ciganos. O seu afã de navegar era tanto, que ele não parava, resultando-lhe disso o justo apelido de João Fogo Aceso. Subia de Parnaíba a Balsas com sua lancha rebocando uma barca repleta de sal e mercadorias manufaturadas, viajando dia e noite, chegava ao destino, amarrava a barca, dava meia-volta com a lancha e retornava por cima do rastro, ou melhor, do banzeiro, sem sequer abaixar a labareda na caldeira.
Casou-se em Balsas, no dia 07.12.1939, com a carolinense Noêmia Coelho de Souza, filha do Dr. Cosme Coelho de Souza, Juiz da Comarca, e de Dona Guilhermina Xavier Coelho, fixando residência em Floriano. Encerrava-se ali sua longa trajetória de marujo folgazão, festeiro e muito namorador. Desse matrimônio, nasceram-lhes os filhos Airton, médico, Holbaner, bancário, Suzane, professora, e Nilson, arquiteto.
Tio Joãozinho era um navegante arrojado e destemido. Certa feita, valendo-se de sua Carta de Piloto Para o Norte do País, foi desafiar os mistérios das remansosas torrentes do Rio Amazonas, na mais fascinante e arriscada aventura de sua vida. Pilotando a lança Palmira, recém-adquirida em Manaus por seu primo João Luiz da Silva, residente em Floriano, desceu o Rio-mar tendo apenas o maquinista na tripulação, em memorável jornada, até chegarem ao Oceano Atlântico, onde a lancha foi içada para o convés de um grande navio, que a transportou até a Porto de Tutoia, no Maranhão.
Tenho-o em minha lembrança como pessoa alegre, divertida, mão-aberta e muito gozadora, qualidade esta que me trouxe motivos de zangas, em 1949, quando eu, aos 12 anos de idade, fui estudar em Floriano, morando com Tia Maria Isaura, irmã dele e do meu pai.
Para fazer graça e me atazanar diante dos demais parentes, veio com uma história de que eu fora registrado com o nome errado. Que Floriano, antes de ter essa denominação, chamava-se Colônia de São Pedro de Alcântara. Por isso, meu nome verdadeiro seria Raimundo Colônia. E assim passou a me tratar desde então, provocando riso e gracejos de quem estivesse por perto. Ao pronunciar colônia, falava culônia, com ênfase na primeira sílaba, exasperando-me mais ainda. Se eu me inflamasse e desse qualquer resposta dura, ele vinha, na maior seriedade, tirando uma de ofendido:
– Me respeite, que eu sou seu tio! Tenha consideração com os mais velhos! Esse menino do Rosa é muito entusiasmado!
Restava-me, então, a única opção possível: calar-me e recolher-me à minha insignificância de moleque atrevido.
Em compensação, Tio Joãozinho, de vez em quando, molhava minha mão com 1, 2 e até 5 cruzeiros, o que me fazia esquecer todas as suas zombarias. Em 1956, ao abonar-me pela última vez, botou-me na mão uma pelega de 10. Aliás, essa sua generosidade é reconhecida hoje por quase todos os seus sobrinhos. A chegada da lancha Tambo em Balsas era sinal de algum dinheirinho no bolso da gente.
Seu nome está indissoluvelmente ligado ao desenvolvimento do Sul do Maranhão e do Norte de Goiás. Figurando entre os pioneiros navegadores do Rio Balsas, percorreu, por quase meio século, seus sinuosos canais e os estirões do Rio Parnaíba, levando em suas barcas, fabricadas nos estaleiros da Sambaíba-MA, mercadorias vitais para a sobrevivência, não somente das populações ribeirinhas, mas de outras mais distantes, radicadas em vastas regiões do Maranhão, Piauí e Goiás.
A carga de suas barcas incluía sempre o sal, que lhes servia de lastro, trazidos das salinas de Amarração, no Oceano Atlântico, que descansava algum tempo nos armazéns de alguns negociantes de Balsas, para depois prosseguir viagem, nas tropas de burros ou em caminhões, alcançando longínquas fazendas, povoados, vilas e cidades além do Rio Tocantins.
Com o fim da Segunda Guerra Mundial, ficou fácil o acesso aos derivados de petróleo. Mais baratos que a lenha, já então escassa, o óleo diesel, a gasolina e o óleo cru foram, gradativamente, determinando a substituição das máquinas a vapor pelos motores a explosão, iniciando-se, assim o encerramento do ciclo da navegação fluvial de longo curso, substituída, pouco a pouco pelo transporte rodoviário.
Mesmo assim, João Clímaco, bem como outros bravos navegadores do seu quilate, continuou a singrar aquelas águas, obstinadamente, agora em barcos popularmente denominados “motores”, propulsionados por modernas máquinas cujo combustível era derivado do petróleo.
São dessa última fase os seus motores João Fernandes, São Pedro e Mensageira de São Benedito.
Encerrou-se, com a desativação das máquinas a vapor, a fase romântica da navegação na Bacia do Parnaíba. Os motores não tinham o mesmo encanto dos vapores e lanchas. Faltavam-lhes, por exemplo, o apito triunfal que anunciava as chegadas, e o apito saudoso que assinalava as partidas, belos, maviosos, altissonantes, que faziam tremer a terra. Os apitos dos motores, por sua vez, eram quase inaudíveis a grande distância.
A construção da Barragem de Boa Esperança, iniciada efetivamente em julho de 1963, dada a ausência de eclusas, tornou inviável a navegação no Alto Parnaíba. Embora resistindo por alguns anos no que ainda lhe restava do rio, o Comandante teve de se render, por fim, à aposentadoria, passando a viver o resto dos seus dias na rememoração dos feitos inesquecíveis, na saudade perene dos rios, dos seus marinheiros e dos seus barcos.
Tio Joãozinho deixou saudades nas barrancas por onde navegou. A marca dos seus cabos de aço trançado, usado nas espiadas, ficou indelével em cada tronco de gameleira à margem das corredeiras do Rio Balsas e das cachoeiras e rasos do Rio Parnaíba.
Particularmente para nós, os seus sobrinhos, foi o herói legendário que, regressando de mundos distantes, apitava na volta do rio, junto à Quinta do Olindo Solino, convidando-nos para uma viagem triunfal até o Porto da Rampa. Sempre nos trazia pequenos presentes: bola de futebol, bombom de apito, barra de chocolate, carrinho de flandre, boneca de louça para as meninas, e até mesmo um trocadinho, como já foi dito.
Tio Joãozinho faleceu no dia 22 de setembro de 1998, em Floriano, aos 95 anos de idade.
A seguir, um pequeno perfil das três embarcações que mais marcaram sua vida de navegador: Chile, Tambo e Palmira.
VAPOR CHILE
Vapor especialmente projetado para operar como rebocador e no transporte de passageiros, o mais belo gaiola de toda a Bacia do Parnaíba. Foi a embarcação de maior importância na vida de João Clímaco, que o comandou por muitos anos e em diversas oportunidades.
Na década de 50, foi retirado da navegação regular de longo curso, para fazer a linha regular ente Teresina e Floriano.
O comprimento de seu casco, cerca de 40 metros, quase o impossibilitava de navegar pelo canal do Rio Balsas, de tal modo que somente conseguia fazer a curva no Porto do Fonseca, com a popa encostada na Tresidela, em marcha a ré, e a proa roçando as areias da margem oposta.
Sua máquina era extremamente silenciosa, quase um sussurro quando em funcionamento. Seu apito, ao contrário, era de potência estrondosa, com sonoridade de incomparável beleza.
Vapor Chile - Acervo Noêmia Coelho da Silva
Quando o Chile apitava no vale do Morro da Arara, em Amarante, a terra estremecia e a montanha devolvia o som em sequências e ecos quase infindável. Em Balsas, seu apito era ouvido em pleno dia, antes mesmo de cruzar a linha de entrada do igarapé, na Barra do Cachoeira, a uma distância de mais de 12 quilômetros.
Originariamente registrado com o nome de Netuno, ao ser adquirido pelo armador João Luiz da Silva, primo de João Clímaco e de meu pai, passou a chamar-se Chile.
Em 1951, fiz nele pequena viagem, até a Barra do Cachoeira, para a grande festa de lançamento no rio do casco do motor Cidade de Balsas, construído ali mesmo por encomenda dos seus proprietários, Hélio Fonseca e José Lima Filho, o Seu Lima, constituindo-se isso em rara exceção, pois todos os cascos, tanto de motores quanto de barcas, tinham sua origem comum nos estaleiros de Sambaíba.
Nessa ocasião, o vapor era capitaneado pelo Comandante Benedito Freitas, primo de meu pai, grande navegador naquela bacia, personagem indispensável neste meu trabalho, ausente apenas por não ter eu conseguido dele uma foto e sequer o mínimo de dados biográficos.
LANCHA TAMBO
Lancha Tambo - Acervo Noêmia Coelho da Silva
Lancha rebocadora construída especialmente para navegar em rios de pequena profundidade. As linhas do seu casco esguio e longilíneo eram de impressionante beleza. Seu nome significava tálamo, ou leito nupcial.
Quando em movimento, balançava graciosamente e, com o simples passar de uma pessoa por um dos lados do seu convés, chegava a adernar.
O Comandante João Clímaco afeiçoou-se a ela de tal forma que, tendo-a comandado em várias oportunidades como empregado, veio a adquiri-la. Seu dono anterior, o primo João Luiz da Silva, detinha, com ela e o Chile, a posse do Casal 20 do Rio Balsas.
Em face do seu pequeno calado, era a única embarcação a hélice a transpor os rasos do Rio Balsas, no pico das águas baixas.
Certa madrugada de chuva, navegando no Baixo Parnaíba, no momento em que ia virar para bombordo, um trovão impediu que o mestre da barca por ela rebocada ouvisse o toque de apito do prático anunciando a manobra e solicitando o afrouxamento do cabo de reboque respectivo, daí resultando que ela adernou além da conta e naufragou. Chegando a estação das águas baixas, foi resgatada, voltando a navegar normalmente como dantes.
LANCHA PALMIRA
Lancha Palmira - Acervo Noêmia Coelho da Silva
Lancha rebocadora de casco curto, largo, de proa em linhas quase curvas, contrastava com a Tambo em elegância, beleza, potência, comprimento, estabilidade, força, velocidade e calado.
Projetada para singrar em águas profundas, somente podia navegar no Rio Balsas na estação das cheias, embora tenha sofrido redução de calado para adaptar-se às condições da Bacia do Parnaíba. Mesmo assim, vez em quando, encalhava.
Foi um dos rebocadores mais possantes dos áureos tempos da navegação a vapor naquela bacia. Sua máquina, de fabricação alemã, era pequena e delicada. Comparada às suas congêneres francesas e inglesas, distinguia-se pela leveza de suas linhas, mais parecendo uma joia do que potente máquina. Quem a visse em repouso, jamais poderia imaginar seu fantástico desempenho.
Vencia as corredeiras do Rio Balsas sem recorrer a espiadas. Foi a única rebocadora a transpor o encachoeirado da Volta do Rio sem se valer do guincho.
Em sua primeira viagem subindo o Rio Balsas, assombrou a todos por sua velocidade, ultrapassando outras embarcações que haviam largado de Floriano até com uma semana de vantagem.
Tio Joãozinho ligava-se a cada um desses três barcos que comandou por sentimentos diferentes: ao Chile, pela saudade, à Tambo, pelo amor, e à Palmira, pelo orgulho.
MOTOR MENSAGEIRA DE SÃO BENEDITO
Os motores, com seus cascos de madeira fabricados por ali mesmo e máquinas a óleo diesel, apresentaram grandes vantagens sobre os vapores e lanchas, até que, também, se tornassem economicamente inviáveis.
Eram rápidos, transportavam passageiros no piso superior e até podiam dispensar reboques, pois carregavam cerca de quarenta toneladas de mercadoria em seus porões.
Tio Joãozinho possui três deles: São Pedro, Mensageira de São Benedito e João Fernandes. Não conheci os dois primeiros. Mensageira de São Benedito era, deduzindo-se pela foto, cópia fiel do João Fernandes, e é deste que guardo pequena recordação.
Em fevereiro de 1956, nele viajei, de Balsas a Uruçuí, com Tio Joãozinho no comando, o Prático Jeremias no timão, e o Comandante Luiz Barbosa como um dos passageiros.
Com poucas horas de viagem, João Fernandes perdeu o leme no meio do Rio Balsas, o que exigiu de toda a marujada e de Luiz Barbosa, que assumiu a orientação das manobras, muita calma e perícia, até que se conseguisse aportar sem perigo. Ali mesmo, foi cortada uma árvore e improvisado um tosco leme, com o qual chegamos a Uruçuí, onde se resolveu o problema em definitivo.
Esta foi a última viagem que fiz naqueles saudosos rios.
Motor Mensageira de São Benedito - Acervo Noêmia Coelho da Silva