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Fábio Martins seguiu o legado do pai, Gomes Calixto (D), à frente da tradicional churrascaria ao lado da Barragem do Paranoá
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As receitas são as mesmas, o gosto é igual e o ponto de venda sempre no mesmo endereço. O crescimento da cidade não impediu que restaurantes e lanchonetes resistam ao tempo e continuassem a fazer a história. No cardápio, trazem memórias, dedicação e tradição. Na reportagem de hoje da série Brasília sexagenária, o Correio conta a trajetória de comércios que inauguraram junto à nova capital ou até mesmo antes dela.
Em uma casa modesta, ao lado da Barragem do Paranoá, Fábio Martins, 44 anos, continua o legado do pai. Apaixonado por culinária, Gomes Calixto dos Santos abriu ali a Churrascaria Paranoá. Inaugurado em fevereiro de 1956, o estabelecimento funcionava como refeitório para os milhares de operários da construção da nova capital do país.
Era ele quem colocava a mão na massa e criava os temperos da galinha caipira, o churrasco misto e as carnes de cordeiro, de jacaré e de rã, pratos tradicionais desde o início da casa e que atrai fãs até hoje. “Antigamente, os donos de restaurantes ficavam sempre no caixa. Meu pai, não. Fazia questão de encostar a barriga no fogão e cozinhar”, conta.
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Enildo Veríssimo (acima) continua tocando a Pizzaria Dom Bosco mesmo após a morte do irmão e sócio, Hely (E)
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Fábio começou a ajudar no local aos 7 anos, como faxineiro. Era responsável por deixar os banheiros e o chão limpos. “Passava aquela cera vermelha, com os joelhos no chão. Meu pai fazia questão de manter tudo organizado. Afinal, a gente recebia de 2 mil a 5 mil pessoas por dia aqui”, lembra. Na adolescência, acompanhava os passos do pai no negócio da família. Aprendeu o que sabe sobre gastronomia com ele.
Passados 64 anos, a churrascaria mantém o mesmo formato, toda de madeira, e a tradição e os desafios são mantidos pelas gerações. “Não dependemos de ninguém. Sou eu e a minha família. Assim como eu assistia meu pai, meus quatro filhos fazem o mesmo comigo. Por mim, eles seguiriam o legado, mas vou deixar cada um escolher o próprio caminho. Fico aqui até minha última gota, como meu pai fez”, disse.
Calixto morreu em 2011, após sofrer um acidente vascular cerebral (AVC). Ele conseguiu acompanhar os passos do filho à frente do negócio. “É um bem que quero manter. Muitas pessoas reconhecem como um bem de Brasília, e isso nos enche de orgulho”, completa.
Tradição
“Uma dupla e um mate, por favor!”. A pizza vem na mão mesmo, em um guardanapo, para comer rápido, ali, em pé, em frente ao balcão. O atendimento é assim há 60 anos na Pizzaria Dom Bosco, na 107 Sul, rua da Igrejinha Nossa Senhora de Fátima. Enildo Veríssimo, 74, proprietário do comércio, garante que o sabor é o mesmo, desde 1960. A receita, ele aprendeu em Minas Gerais. “Eu trabalhava em uma pizzaria em Araxá e aprendi a fazer a massa lá, com um italiano”, lembra. O aprendizado caiu como uma luva ao chegar a Brasília, à procura de um emprego.
Ele veio com o irmão Hely Veríssimo, que morreu em 2014, após um infarto. “O pessoal ia montando as coisas para vender. À época, o governo deixava você abrir o comércio e só depois arrumava a documentação, porque, se eles dificultassem, o pessoal ia embora”, diz. “O povo colocava o nome de Dom Bosco em tudo na época”, comenta Enildo.
O comércio é o único que permaneceu desde o início de Brasília na quadra, segundo o empresário, mantendo sempre o mesmo padrão. “É a mesma receita, atendimento e qualidade. Estamos na oitava geração de clientes. Tem gente que vem de manhã, à tarde e à noite”, comenta.
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"Ainda é a mesma pizza da minha adolescência. Isso é uma raridade em Brasília. É um dos poucos lugares que consegue se manter" Ana Lúcia Leite, aposentada
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A aposentada Ana Lúcia Leite, 63, é uma das clientes fiéis. A mineira chegou a Brasília antes da inauguração da cidade, em 1959, quando tinha 2 anos, e ia sempre com os pais. Mas passou a frequentar mais vezes na adolescência. O pedido era sempre o mesmo: a tradicional pizza de muçarela, com muito molho, e uma caçulinha, refrigerante pequeno.
Hoje, mesmo morando um pouco mais distante, no Lago Norte, a tradição continua. “Venho eu, meus filhos e netos. Todo mundo gosta. O pedido continua o mesmo. Não tem como mudar”, brinca Ana Lúcia. “Ainda é a mesma pizza da minha adolescência. Isso é uma raridade em Brasília. É um dos poucos lugares que consegue se manter. Tornou-se algo fraterno”, completa.
Além do ponto na rua da Igrejinha, a pizzaria Dom Bosco abriu outras quatro lojas. Elas são comandadas pelos filhos e por sobrinhos de Seu Enildo. “É um privilégio muito grande. A gente fica orgulhoso. Espero que a pizzaria continue firme por muitos anos”, destaca.
Reconhecimento
Para o professor emérito do Departamento de Arquitetura da Universidade de Brasília (UnB) José Carlos Coutinho, estabelecimentos como a Churrascaria Paranoá e a Pizzaria Dom Bosco deveriam entrar no roteiro dos turistas. “Geralmente, eles vêm para ver os monumentos da cidade, que realmente são grandes atrações e devem ser vistos. Mas esses restaurantes escrevem a história da nova capital. Se quer saber da história de Brasília, tem que visitar esses lugares também”, sugere.
O especialista chegou a Brasília em 1968 e lista outros restaurantes que se tornaram pontos de encontro, como João do Frango, Xangô, Cantina Amaral, e tantos mais, dentro ou fora do Plano Piloto. “Na Asa Sul, por exemplo, era só poeirão, sem pavimentação, e os programas exóticos eram sempre para comer. A rua da Igrejinha era considerada o shopping de hoje. Era o miolo da cidade e, aos poucos, foi se expandindo”, lembra o professor.
Um dos primeiros pontos que ele visitou em Brasília foi a Churrascaria Paranoá. “Deveria ser até tombado. Não pela qualidade artística, mas histórica. Ou, pelo menos, assinalar uma placa que lembrasse mais a existência dela. Além de ser um estabelecimento junto ao acampamento do Paranoá, que acolheu os operários, é um lugar histórico”, afirma Coutinho.