"Coisa que não edifica nem destrói"... mas faz rir e pensar
Com referências que vão da literatura clássica de Homero ao anti-herói da Marvel, Deadpool, o escritor e humorista português Ricardo Araújo Pereira desmistifica o humor em seu novo livro de ensaios lançado pela Tinta-da-China Brasil
Coisa que não edifica nem destrói é uma “experiência social em que Ricardo Araújo Pereira fala sozinho durante bastante tempo sobre assuntos que o entusiasmam muito mas talvez não interessem a mais ninguém", como define o próprio autor. Leitor assíduo de escritores brasileiros, ele tomou o título emprestado de um trecho de Memórias póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis, uma de suas grandes referências.
Em tempos em que o humor circula pelas redes sociais em escala industrial, com influencers e artistas de stand-up comedy, e é usado como pano de fundo narrativo de debates políticos, Araújo Pereira experimenta defini-lo. Desde as origens do termo até as discussões mais recentes.
Talvez o humorista seja como uma mosca, que incomoda, mas não causa danos maiores? Como um defunto que não se preocupa com sua reputação? Ou como um malandro que engana, um jogador de futebol que dá dribles? Uma coisa é certa: o humorista não tem coração.
Para Ricardo Araújo Pereira, o humor precisa ser desmistificado. Falar e pensar sobre o humor é como falar e pensar sobre qualquer outra arte e não deveria quebrar sua suposta “magia”, como muitos pensam. E é por isso que, como um bom humorista, ele se permite falar um bocado de sua técnica: o timing, a punchline, a pausa, o silêncio.
O autor parte das origens do termo humor, que já quis dizer “fluido”, “secreção”, numa época em que o “humorista” deveria ser alguma coisa próxima de um “endocrinologista”, para depois contar da histórica disputa entre franceses e ingleses pela invenção do gênero. Araújo Pereira usa muitas referências, citando episódios que vão desde a Guerra de Troia até o recente tapa de Will Smith em Chris Rock durante a cerimônia do Oscar.
Ele defende uma espécie de manifesto antissentimentalista. Para ele, é preciso falar com o cérebro e não com o coração. Rir não é o contrário de chorar, afirma, mas sim de estar sério, e rir e chorar talvez sejam manifestações mais próximas do que imaginamos. Ele concorda com Henri Bergson: “O riso não tem maior inimigo do que a emoção”.
Ele também aborda a pergunta de 1 milhão de dólares: Há limite para o humor? Spoiler: nesse ponto sua opinião é radical, Araújo Pereira sustenta que ou se deve não rir de nada ou então rir de tudo.
Para ajudá-lo nessa tarefa, o humorista e cronista português convoca clássicos como Homero, Rabelais, Drummond, Shakespeare, Pessoa, mas também menciona o anti-herói da Marvel, Deadpool. O resultado são ensaios férteis e saborosos que misturam a erudição e a simplicidade que lhe são características.
O livro é uma adaptação da primeira temporada do podcast homônimo, veiculado entre 2023 e 2024, sucesso de audiência em Portugal. A edição brasileira do livro traz imagens nas aberturas de cada capítulo. Um livro imperdível para aqueles que fazem humor e para aqueles que gostam de dar uma boa risada.
Sobre o autor:
Ricardo Araújo Pereira (Lisboa, 1974) é formado em comunicação social pela Universidade Católica Portuguesa, e começou a carreira como jornalista no Jornal de Letras. É roteirista desde 1998. Em 2003, com Miguel Góis, Zé Diogo Quintela e Tiago Dores, formou o grupo de humor Gato Fedorento. Escreve semanalmente no Expresso (Portugal) e na Folha de S.Paulo e é um dos integrantes do Programa Cujo Nome Estamos Legalmente Impedidos de Dizer (SIC). É autor, com Cátia Domingues, Cláudio Almeida, Guilherme Fonseca, Joana Marques, Manuel Cardoso, Miguel Góis e Zé Diogo Quintela, e apresentador de Isto É Gozar com Quem Trabalha (SIC). Criou e apresenta o podcast Coisa que Não Edifica nem Destrói (SIC), cuja primeira temporada deu origem ao livro homônimo. Pela Tinta-da-China Brasil, publicou ainda Se não entenderes eu conto de novo, pá (2012), A doença, o sofrimento e a morte entram num bar (2017) e Estar vivo machuca (2022). Coordena a coleção Literatura de Humor da Tinta-da-china Portugal. É o sócio no 12.049 do Sport Lisboa e Benfica.
Sobre a Tinta-da-China Brasil
É uma editora de livros independente, sediada em São Paulo, gerida desde 2022 pela Associação Quatro Cinco Um, organização sem fins lucrativos. Sua missão é a difusão da cultura do livro.
Ficha técnica:
Título: Coisa que não edifica nem destrói
Autor: Ricardo Araújo Pereira
Editora: Tinta-da-China Brasil
Páginas: 240 pp.
ISBN: 978-65-84835-37-5
Preço: R$ 74,90
Formato: Brochura, 13 cm x 18,5 cm
Tiragem: 2000 exemplares
Lançamento: 17 de março
Trechos
Moscas
“Mais: há dias, soube que os cientistas descobriram que as moscas zumbem em fá. As moscas, todas as moscas do mundo, quando voam, produzem a nota musical fá. O cuidado que foi posto na criação da mosca, a minúcia com que a obra foi feita é tal que alguém ou alguma coisa se dedicou a pormenores como este: as moscas zumbem impecavelmente afinadas. Em contraponto com o esmero e o rigor milimétrico com que as moscas foram feitas, eu subo uma escada e os meus dois joelhos estalam. Cada um na sua nota.” [p. 89]
A diferença entre o humorista e o político
“A estratégia política depende de um tipo de raciocínio convencional; a humorística depende da imaginação, e baseia-se na ideia de que pensar nas coisas da maneira certa é, quase sempre, insuportável. Quem aplica a estratégia política deseja assenhorear-se do mundo; quem aplica a estratégia humorística deseja assenhorear-se de si — para resistir ao mundo. É possível que o melhor resumo seja este: tanto Hal como Falstaff desejam reinar. Mas Hal deseja reinar no sentido próprio — de ocupar o trono e governar; Falstaff deseja reinar no sentido que damos à palavra na frase ‘os miúdos estão no jardim a reinar’. Talvez seja por causa dessa confusão entre reinar e reinar que surgiu a ideia mitológica do enorme poder político do humor.” [p. 124]
Sobre os limites (ou não limites) do humor. rir de tudo, não rir de nada
“Não gosto muito de fazer afirmações categóricas, mas estou convencido de duas coisas: primeiro, que a razão pela qual são Basílio defende que não devemos rir de nada é precisamente a mesma razão pela qual Jacques, o fatalista, deseja rir de tudo; segundo, que, no que toca ao riso, só existem essas duas posições radicais. Não creio que haja meio-termo. Ou defendemos que é possível rir de tudo ou defendemos que não é possível rir de nada. A partir do momento em que abrimos uma excepção (‘podemos rir de tudo excepto disto’ ou ‘não podemos rir de nada excepto daquilo’), deixa de ser possível sustentar a posição. O mesmo argumento que valida uma excepção sanciona todas as outras. Por exemplo: podemos rir de tudo excepto do sagrado. Que sagrado? Deus? Só um deus ou todos os deuses? Podemos rir de Poseidon? E aquelas pessoas que não são crentes mas para as quais outras coisas são sagradas — coisas tão diferentes como a família, o partido, o país, o presidente da República ou, porque não, o tricô?” [pp. 146-7]
“O que causa estranheza é que um músico, um pintor ou um realizador não tenham uma ideia sobre o que o seu trabalho deve ser. E um escritor que não saiba nada de literatura é — muito justamente — reputado de idiota. Mas, quando se trata de humor, considera-se que falar do assunto estraga uma espécie de magia. [...] No fundo, o que quero dizer é que isto do humor tem tanto de místico como qualquer outra forma de escrita — ou de trabalho. Nada.” [pp. 7-8]
“Começo por avisar que vou ensaiar uma teoria. Já sei que, quando alguém ensaia uma teoria, há sempre um desmancha-prazeres que tenta contestá-la, apontar-lhe fragilidades, inconsistências, excepções. Não me interessa. A teoria é esta: na epopeia, nós saímos de casa e vamos matar gente de outras famílias; na tragédia, ficamos em casa a matar gente da nossa família; na comédia, não saímos do quarto e ficamos sobretudo a pensar na nossa própria morte.” [p. 198]
“Sei que certos espíritos ficarão desconsolados com a ideia de que o humor possa ser isto, uma coisa que não edifica nem destrói, mas creio que a disposição humorística é avessa a grandes aspirações, e inclina-se a considerar pretensiosa — e até ridícula — a intenção de edificar ou destruir. Tanto o que julga ter a missão de edificar como o que se sente habilitado para destruir estão forçosamente convencidos da sua própria importância. E parecem incapazes de conceber que, entre a edificação e a destruição, há várias outras atitudes possíveis e estimáveis. Além disso, o humor é uma espécie de antídoto para o fanatismo, é antidogmático. E por isso é natural que, sendo embora mais do que passatempo, seja sempre menos do que apostolado.” [p. 22