21 de outubro de 2020 | 05h00
Em 2008, o sample de Deixa Eu Dizer, música de Ivan Lins e Ronaldo Monteiro de Souza que a cantora Claudya gravou em seu LP de 1973, caiu como uma luva no rap Desabafo, de Marcelo D2, do disco A Arte do Barulho. A sacada de D2 fez com que a voz da cantora ecoasse por toda a parte: estava nas rádios, nas pistas e foi parar até na trilha sonora de Velozes e Furiosos 5: Operação Rio. De repente, uma nova geração descobria a cantora e passou a ir atrás de seus discos, de sua história. Aquele episódio tornava-se um novo e importante capítulo na carreira de Claudya, que, apesar do reconhecido talento, encontrou percalços que fizeram com que sua trajetória fosse marcada por altos e baixos.
É o que ela rememora em depoimento aos autores Daniel Saraiva e Ricardo Santhiago no livro Claudya – O Que Não Me Canso de Lembrar, o primeiro do projeto A Música de: História Pública da Música do Brasil. Lançado recentemente, está à venda no site www.amusicade.com/nossaloja. “Os livros surgiram de uma percepção que poucos artistas da música brasileira tiveram suas trajetórias narradas no mercado editorial”, diz Daniel Saraiva, editor e pesquisador, sobre a criação do braço editorial do A Música de.
O trompetista Waldir de Barros, que Claudya considera o grande apoiador da sua carreira, trabalhava na orquestra da TV Record, lhe falou sobre o programa e sugeriu que fizesse um teste. A jovem cantora fez e foi contratada. Foi escalada para a segunda parte da atração, juntamente com Elis Regina, Jair Rodrigues, Baden Powell, entre outros. Mas ali o público não a conheceu como Maria das Graças, seu nome de batismo, mas, sim, como Cláudia, nome artístico sugerido pela própria cantora, inspirada na ascendência italiana por parte do pai. “Eles queriam um nome marcante”, lembra ela, em entrevista ao Estadão. Ficou apenas Cláudia – na década de 1990, virou Claudya, por sugestão da numerologia.
Ali, ela iniciou uma jornada promissora, mas foi também o período em que sofreu um dos grandes baques da carreira. Por causa das aparições nos programas de TV, ela gravou o primeiro disco, um compacto, em 1965. No ano seguinte, o jornalista e produtor Ronaldo Bôscoli a chamou para fazer uma temporada de shows no Rio. No entanto, Claudya conta, Bôscoli propôs que o show se chamasse Quem Tem Medo de Elis Regina?. A cantora não entendeu a proposta – como diz não entender até hoje – e não concordou. O título ficou definido em Cláudia: Não Se Aprende na Escola.
Mas a história se espalhou. E Claudya foi alvo do que hoje chamamos de fake news: foi tachada de oportunista, aquela que queria tomar o espaço de Elis. Ela conta que as portas se fecharam e nada foi feito para reverter o mal-entendido. “A intenção deles era botar mais lenha na fogueira, porque O Fino da Bossa estava perdendo audiência para o programa Jovem Guarda, do Roberto Carlos. Eles queriam aumentar a audiência do programa e, para isso, só fazendo o que eles fizeram: fomentar uma rivalidade, uma briga e eu não queria nada disso. O que eu queria era cantar, ganhar meu dinheiro, trabalhar.” Ela lamenta nunca ter conseguido conversar sobre o assunto com Elis, que morreu em 1982. “Eu precisava e sentia necessidade de falar com ela, mas infelizmente não foi possível.”
Claudya deixou o programa, apesar de a direção insistir para que ficasse, e foi para a TV Excelsior participar do programa Ensaio Geral, ao lado de Gil, Caetano, Bethânia, entre outros. Mas, segundo ela, o conflito em O Fino da Bossa fez com que as oportunidades no Brasil diminuíssem. Decidiu ir para o Japão, onde ficou por seis meses fazendo shows, gravou dois compactos e um disco. Já de volta ao País, a era dos festivais surgiu como um novo sopro em sua carreira. A cantora participou de festivais como da TV Record e da TV Excelsior, e também no exterior, defendendo canções dos irmãos Marcos e Paulo Sérgio Valle, de Baden Powell, Paulo César Pinheiro, entre outros.
Mas queria se descolar do rótulo de ‘cantora dos festivais’. “Na verdade, eu não gostava de ser marcada com nada: a cantora romântica, a cantora de samba, a cantora de festival... Nunca gostei disso. Eu era crooner de orquestra, de grupos musicais lá em Juiz de Fora, e eu era acostumada a cantar de tudo”, diz.
Na Odeon, no início da década de 1970, gravou alguns de seus melhores discos, mas também viu outro sonho interrompido. Na gravadora, fez grande sucesso com o primeiro álbum, Jesus Cristo, de 1971, e com a regravação da canção-título, de Roberto e Erasmo Carlos. Depois vieram os álbuns Você, Cláudia, Você e Deixa Eu Dizer. Ela estava no auge. Mas a chegada de Clara Nunes ao cast da Odeon, segundo Claudya conta, fez com que a gravadora decidisse concentrar as atenções apenas na então nova cantora. Vale um parênteses aqui: àquela altura, Claudya também já era compositora, numa época em que, como a cantora diz no livro, “não se confiava muito nas mulheres compositoras”.
Anos mais tarde, em 1983, no entanto, a artista vivenciou um momento especial na carreira, ao ser escolhida para protagonizar o espetáculo Evita, sobre a história de Eva Perón, em que cantaria, dançaria e também atuaria, ao lado de atores como Mauro Mendonça e Carlos Augusto Strazzer. Foram nove meses em cartaz só no Rio. Um período exaustivo, mas de sucesso. “Titubeei muito para fazer o espetáculo, porque eu não era atriz, e ia ser comparada com as grandes atrizes brasileiras, como Bibi Ferreira e Marília Pêra, que faziam musicais também”, lembra. “A trilha sonora dificílima de cantar.” Seu trabalho rendeu elogios, capas em jornais e revistas, e indicação para o prêmio Molière.
Hoje aos 72 anos e com 55 anos de carreira, Claudya, que é mãe da cantora Graziela Medori, segue, teimosa, como ela diz, no que ama fazer, que é cantar. Antes da pandemia, ela estava fazendo uma série de shows em comemoração à sua trajetória.
“Claudya é uma cantora extraordinária, com timbre, técnica e percepção musical absolutamente únicos”, diz Ricardo Santhiago, também editor e pesquisador do livro. “Na realidade, os efeitos desses percalços individuais são intensificados em um circuito de produção musical que se transformou enormemente desde os fervilhantes anos 1960, se comprometendo cada vez mais com os modismos de um certo mercado. Por isso, é importante historicizar, sem vitimismo.”