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Desde 2013, festividade recebeu o título de Patrimônio Cultural da Humanidade da Unesco. Expectativa do Dieese é movimentar, até o fim do mês, R$ 1 bi na capital paraense
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Belém — Ele saiu de Manaus na manhã de sábado com destino a Belém. Chegou no começo da tarde o que havia de fazer ali. Percorreu os 3,7 km que separam Basílica de Nazaré da Catedral da Sé para pagar a sua promessa. Há oito anos, ele faz a mesma coisa. O gerente de lojas Richard Miranda, de 29 anos, chega à Sé com os joelhos em carne viva, depois de sangrar por sete longas horas ao encontro de Nossa Senhora.
Essa é a essência do Círio de Nazaré, a maior celebração católica do Pará e do Brasil, que, neste ano, completou 227 anos. Desde 2013, recebeu o título de Patrimônio Cultural da Humanidade, da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco). São histórias de devoção, dor, lágrimas e renascimento. É pura catarse de fé coletiva. Nas ruas, todo paraense diz que, para entender o significado do Círio, é preciso vir, ver e viver.
Richard, ao longo da maior parte do autoflagelo de joelhos, foi ajudado por vários voluntários, pessoas que trabalham sem nada em troca todos os dias de celebração do Círio. Só pelo prazer em servir. Um deles foi o bombeiro civil Hadren Moura, de 22 anos. Detalhe: Hadren é evangélico da Assembleia de Deus. Incompatibilidade? “Nenhuma. Sinto prazer em ajudar na fé, que é dele, e move tudo”, afirma. Richard, com os dois joelhos dilacerados, não disse mais nada. Bebeu água que lhe derramaram na boca e corpo e arrastou-se entre os caminhos de papelão que os voluntários improvisaram para que ele vencesse a sua via-crucis.
Belém, de sexta até o início da tarde de ontem, dia da grande e principal procissão, encharcou-se de Nossa Senhora de Nazaré. E não é só força de expressão. Ora água da chuva, típica na região no meio da tarde; ora água jogada pelos fiéis, para amenizar o calor e o sofrimento dos pagadores de promessas. Uma multidão de mais de dois milhões de seres invadiu as principais avenidas, cheias de mangueiras da cidade, para celebrar a padroeira da Amazônia. E, segundo o Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese), toda essa gente vai injetar, até o fim de outubro, quando se encerram as celebrações para Nossa Senhora, cerca de R$ 1 bilhão à economia local.
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Há oito anos, Richard Miranda percorre 3,7 km de joelhos até a Basílica, e, ao lado, o bombeiro Hadren Moura, evangélico, trabalhando como voluntário
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Gente com velas enormes na mão. Gente com pedaços de corpos em cera. Gente com miniaturas de casas. Gente com livros na cabeça, pela graça de ter conseguido a aprovação em algum concurso. Gente. Gente em excesso. Gente com histórias de superação. Gente que veio pedir. Gente chorando, cantando. Um mar de gente.
Entre essa gente tanta, antes das 6 da manhã, estava Simy Coutinho, de 55 anos, vestida de Santa Edwiges, a santa das causas impossíveis. “Vim para agradecer pela saúde da minha mãe, que estava com câncer, desenganada, e hoje está curada”, contou. Na mão, Simy segurava a imagem de Edwiges. Os olhos abertos para Nossa Senhora de Nazaré. “Ela, a Virgem de Nazaré, me ampara todos os dias. É impossível viver sem ela”.
E as histórias vão se sucedendo ao longo do percurso que separa a Sé da Basílica, itinerário da última procissão do Círio. Mais à frente, a miudinha Iasmin, de nove meses, vestida de anjo, dormia nos braços da avó, Lurdinha de Souza, de 59 anos, que saiu de Icoaraci, distrito de Belém.
“Minha filha teve parto muito difícil. Minha neta nasceu prematura e precisou de cuidados intensivos”, disse a avó. A mãe de Iasmin, Sulian Letícia, de 26 anos, ainda na maternidade, decidiu que a filha viria de anjo no próximo Círio. E veio. Iasmin dormiu, literalmente como anjo, no braço da avó. “Ano que vem, será a vez de pagar a minha parte na promessa. Vou fazer a caminhada na corda”, disse Sulian.
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Iasmin, de nove meses, vestida de anjo, nos braços da avó, Lurdinha de Souza
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SacrifícioA procissão de ontem saiu da Avenida Presidente Vargas, passou pela Avenida de Nazaré e chegou à Basílica, onde a imagem peregrina ficará por alguns dias em adoração. Depois segue para o Colégio Gentil Bitencourt, seu lugar de moradia e visitação até o ano que vem, quando se iniciam as celebrações de mais um Círio.
No percurso, a santa foi ovacionada com palmas, cânticos e muitas lágrimas. Em cada esquina, a multidão correu para vê-la passar. Mesmo que de longe. Mesmo com apenas um aceno. Nossa Senhora de Nazaré, na sua berlinda e com o manto confeccionado para este ano, seguiu pelas avenidas de uma Belém entupida. Na corda, onde pagadores de promessa — homens e mulheres descalços – se agarram durante toda a procissão, as cenas são inacreditáveis. É, certamente, o momento de maior dor, de desespero, de resistência e de demonstração dessa gente devota.
Durante a caminhada, os voluntários (ontem se somaram mais de 5 mil) jogaram água nas pessoas agarradas às cinco estações da corda. Cada uma tem 50 metros de corda. Depois que todas as cinco estações passaram, veio Nossa Senhora de Nazaré, na sua berlinda. O ponto alto. Pessoas ajoelharam nas ruas e calçadas. Uma multidão assistiu das janelas ou varandas dos apartamentos.
A certa altura da Avenida de Nazaré, a emoção tomou conta de toda aquela gente. Crianças de famílias carentes do Projeto Vale Música cantaram várias canções em homenagem à Virgem de Nazaré. Elas ensaiam durante todo o ano para esse grande dia. É um detalhe interessante.
Grande parte dessas crianças vem de lar evangélico. Os pais autorizam, incentivam e ontem estavam lá para ver os filhos cantarem à Maria. Catarina, de oito anos, filha de uma professora e um taxista, resumiu tudo: “Eu canto para Nossa Senhora de Nazaré, que é mãe de todos, mãe da Amazônia”. Vitor Mateus, de 11 anos, filho de pais evangélicos, continuou: “Cantando, eu falo de amor e fé”.
A idealizadora do projeto, a pianista Glória Caputo, emocionou-se ao falar do projeto que existe há 15 anos: “É realização. O Brasil é isso. Basta dar oportunidade, que as pessoas mostram que sabem fazer”.
*O repórter viajou a convite da Vale