23 de dezembro de 2020 | 17h11
A Cinemateca Brasileira, instituição que tem o dever de preservar e difundir o acervo audiovisual do Brasil, sofreu muito em 2020. O que começou com atrasos de pagamentos por parte do governo federal se transformou em arma na guerra cultural em curso, acentuada pela troca constante de secretários especiais da Cultura e por um longo período de indefinição por parte do Ministério do Turismo, que ainda não cumpriu a promessa — de agosto — de lançar um novo edital de gestão para a entidade.
Os sinais da crise já estavam presentes em maio, quando o presidente Bolsonaro demitiu Regina Duarte da Secretaria Especial e anunciou, ao lado da atriz, que ela iria passar a "fazer Cinemateca". O cargo anunciado não existia, pois quem administra a instituição é uma Organização Social definida em edital. No caso, a Associação Roquette Pinto (Acerp), que já na época reclamava dos atrasos nos repasses do governo federal, previstos em orçamento.
O que é a Cinemateca Brasileira?
O que aconteceu foi que o contrato da Cinemateca (assinado pelo então ministro da Cultura Sérgio Sá Leitão, durante o governo de Michel Temer) era vinculado a outro contrato que a Acerp mantinha com o governo, no Ministério da Educação, para a gestão da TV Escola. O então ministro Abraham Weintraub decidiu unilateralmente não renovar este vínculo, que se encerrava em 2019, e assim o acordo com a Cinemateca ficou num limbo.
A Acerp fez seus esforços para manter a instituição funcionando até agosto, quando, acompanhado de agentes da Polícia Federal, um membro da Secretaria Especial da Cultura foi até a instituição "pegar as chaves". Nesse dia o Ministério do Turismo, ao qual a Secretaria está vinculada, prometeu que em poucas semanas um novo contrato de gestão seria lançado, o que ainda não ocorreu.
A questão da Cinemateca envolve diversos fatores sensíveis, como a formação específica de seus funcionários (muitos há décadas na casa; todos foram demitidos nesse episódio de agosto), termos e acordos antigos assinados entre esferas diferentes de governo (municipal e federal, especialmente), e a necessidade de segurança especializada no local, para evitar acidentes, como um incêndio em 2016 (quando a instituição passava por outra crise) que levou mais de mil rolos de filmes.
O Ministério Público Federal ajuizou uma ação civil pública cobrando da Justiça um posicionamento no sentido de dar urgência à questão dentro do governo federal. Uma liminar decidiu por não dar esse encaminhamento, mas a ação ainda corre.
No dia 17 de dezembro, uma carta assinada pelo movimento S.O.S. Cinemateca, apoiada por mais de cem produtores audiovisuais, foi entregue à Secretaria do Audiovisual. "Isso porque apesar das promessas do Secretário do Audiovisual, Bruno Côrtes, de que a Sociedade Amigos da Cinemateca seria contratada para executar um plano de trabalho emergencial de gestão do acervo, transcorridos 4 meses desde a entrega das chaves, a Cinemateca continua abandonada", diz um comunicado à imprensa. "A recente exoneração de mais um Ministro do Turismo e o infarto do Secretário da Cultura, Mário Frias, pressagiam mais imobilismo."
Demissão de Regina Duarte e seu anúncio para a Cinemateca pega todo mundo de surpresa: instituição já estava mergulhada na crise, com risco de ter energia elétrica cortada por falta de pagamentos das contas de luz.
Manifestação em frente ao prédio, na Vila Mariana, pedia resolução do impasse na instituição. Em ofício enviado ao Governo Federal, a Acerp pedia esclarecimentos sobre questões ainda indefinidas, como os repasses atrasados. A sensação na Acerp, segundo fontes ouvidas pelo Estadão na época, é de que a Cinemateca chegou a esta situação de agora porque a Secretaria de Cultura está à deriva.
Uma intervenção do vereador de São Paulo Gilberto Natalini (PV) apontou para a Enel (antiga Eletropaulo) sobre a importância da manutenção da energia elétrica na instituição. "Recomendo que a Cinemateca enquanto inadimplente não seja tratada como uma entidade ou empresa qualquer, as consequências culturais de um apagão energético seriam graves", dizia o ofício do vereador. A dívida da conta de luz se aproximava dos R$ 500 mil.
O Ministério Público Federal ajuizava uma ação civil pública contra a União pedindo a renovação do contrato de gestão da Cinemateca Brasileira com a Associação Roquette Pinto, e o repasse imediato de R$ 12 milhões, recursos já previstos e alocados no orçamento.
A Justiça Federal nega em caráter liminar o pedido do MPF em razão da "separação entre poderes", bem como da ausência da "urgência na decisão", conforme a Procuradoria apontava.
Representante do governo federal, acompanhado de agentes da Polícia Federal, chega à Cinemateca para “pegar as chaves”, um ato simbólico de transferência de responsabilidades.
O presidente da Acerp, Francisco Câmpera, disse: 'Foi uma brutalidade eles virem para a Cinemateca com a Polícia Federal'.
O Ministério do Turismo, com extratos de dispensa de licitação publicados no Diário Oficial, destina verbas emergenciais à Cinemateca. Um deles de cerca de R$ 1 milhão para a Eletropaulo, por meio da concessionária ENEL Distribuidora São Paulo, para fornecimento de energia elétrica.
Todos os funcionários da Cinemateca, especialistas que trabalhavam na casa há anos, e em alguns casos, décadas, são demitidos.
Um decreto (10.548/2020) define que a Cinemateca será gerida pela Secretaria Nacional do Audiovisual, que pertence à Secretaria Especial da Cultura, ligada ao Ministério do Turismo, até 5 de outubro de 2021. Cargos em comissão do Ministério foram transferidos à instituição, mas ainda não preenchidos.