Aos poucos elas vão chegando, muitas vezes sem que ninguém perceba. De um momento para o outro, parecem ter tomado conta das árvores do Distrito Federal. Incômodo para uns, deleite para outros, a boa notícia é que, quando esses insetos surgem, a chuva também marca presença. O barulho traz certo alívio para os brasilienses, mesmo para os incomodados, porque o canto das cigarras coincide com o fim do longo período de secas na capital.
Tão pequeno e com uma potência gigante, as cigarras se camuflam em meio aos galhos e troncos de árvores, onde passam por uma transformação até deixarem a casca para trás e se tornarem adultas. O barulho? Não passa de uma estratégia dos machos para atrair as fêmeas. O zoólogo da Universidade de Brasília (UnB) Paulo César Motta explicou que o som, ao contrário do que a maioria das pessoas pensam, não é emitido pela boca e, sim, pelo abdômen das cigarras. “Elas cantam como estratégia de acasalamento. Na barriga, elas têm uma estrutura chamada de tímbalo, que são como tamborzinhos, é basicamente oca e os movimentos que ela faz gera os sons”, esclareceu o especialista. Os músculos do tímbalo realizam movimentos de contração e relaxamento sucessivos deformando essa membrana em uma frequência que pode variar de 120 a 600 repetições por segundo.
Moradora da 207 Sul há 60 anos, Maria Amélia Parente, 74, sentiu falta dos bichinhos neste ano. Segundo ela, as cigarras desapareceram. “Antes, nessa época, já ficava ensurdecedor, parecia uma orquestra sinfônica, uma começava e as outras logo vinham atrás. Era lindo! Hoje, tem uma ou outra solitária. É uma tristeza, para mim, sinto muito falta”, lamentou. Maria Amélia afirmou que muita gente não gostava do som e se irritava, por isso tomaram providências para diminuir a quantidade na região. “Não sei como alguém pode se irritar com a natureza. Elas voando assustam um pouco, mas é só desviar. Afinal, nós invadimos o espaço delas. E é triste perceber que todo ano diminui cada vez mais”, acrescentou a aposentada.
Apesar de algumas pessoas terem notado menos cigarras, Motta afirmou que a época dos bichinhos aparecerem está apenas começando. “Elas saem da terra agora e cantam, geralmente, até dezembro. Durante esse período, se reproduzem e depositam os ovos nos ramos das árvores. Depois disso, morrem e um novo ciclo começa”, explicou. No DF há cerca de oito espécies de cigarras, algumas delas mantêm a cantoria até abril.
A designer de interiores Lorena Santarém, 35, é apaixonada pela natureza e fã declarada das cigarras. Ela contou que, neste ano, elas estão mais tímidas e chegando aos poucos. “Comecei a ouvir bastante na semana passada, e está aumentando cada vez mais. Elas cantam mesmo lá para o final da tarde, aí fica bem alto”, relatou.
Pelo menos três vezes por semana a moradora do Mangueiral vai ao Parque da Cidade para ler, estudar e se conectar com a natureza. A época em que as cigarras aparecem para alegrar o fim da tarde é, sem dúvida, o mais aguardado por Lorena. “E não é só aqui que as escuto, perto da minha casa tem uma área de mata, tem bastante. Essa é uma época que espero ansiosa para chegar. Acho muito bom, é uma coisa tão natureza, é lindo ver elas cantando, anunciando a vinda da chuva.”
Apesar da crença de que a cigarra anuncia ou traz a chuva, o zoólogo Paulo César Motta afirmou que não há uma correlação comprovada entre as cigarras e a temporada de chuvas, mas que algumas hipóteses são levantadas para o fato de as cigarras emergirem do solo nesse período de transição entre a seca e a chuva. De acordo com o especialista, com as chuvas, o solo fica mais maleável e é mais fácil para os insetos saírem da terra, para subir em troncos de árvores e completarem a fase adulta. “É notável que elas adaptaram seus ciclos biológicos com a chegada da chuva, é evidente que tem uma relação, mas o motivo não é comprovado e não se sabe o que é a causa ou efeito”, disse.
Outro mito muito comum é o de que as cigarras cantam até estourar. Ao contrário do que se pensa, o casulo é a última fase da ecdise, o nome do processo de metamorfose vivido pelo bicho. Nessa fase, a cigarra se liberta do esqueleto externo para que, adulto, mude de estrutura e obtenha asas.
Memória afetiva
Ensurdecedor para uns, adorado por outros. O som produzido pelas cigarras pode não agradar todo mundo, mas para o empresário Cláudio de Alcântara, 44, o som traz lembranças da infância, no interior da Bahia. “Eu gosto muito da natureza, sou da roça e vim para cá em 1997. Eu sinto falta da roça, tipo cigarra, pássaros, animais no geral. Ouvir esse som e estar na natureza me remete a lembranças boas, me traz uma aconchego do lugar que eu vim e tenho boas lembranças de infância”, contou o morador do Paranoá.
Pai da pequena Emanoele de Alcântara, 4, ele tenta passar a tradição e o amor pela natureza para a menina, que, destemida, alimentava os patos do Parque da Cidade. “Quero que ela se acostume e goste do som das cigarras, respeite a natureza e possa vivenciar um pouco essa área livre, como eu vivenciei na roça.”
SAIBA MAIS
O ciclo da vida
“No Distrito Federal existem cerca de oito espécies de cigarras, cada uma com suas características e som próprio. Apesar de surgirem durante um curto período do ano, as cigarras se abrigam debaixo da terra, estimadamente, de quatro a sete anos, percorrendo túneis escavados, se alimentando da seiva das raízes, até que estejam prontas para a nova etapa. Após esse período, elas saem da terra, deixam um buraco no solo e sobem em árvores ou galhos para completarem a fase adulta. Quando isso acontece, se abre uma fenda no dorso das cigarras e elas deixam a casquinha naquele tronco. A partir daí, começam a cantar para acasalar. O macho emite sons para atrair as fêmeas. Com o acasalamento, a fêmea coloca os ovos em galhos, depois disso os adultos morrem — eles vivem cerca de dois ou três meses fora do solo. Os filhotes, quando nascem, caem das árvores no solo e o ciclo começa novamente.”
Paulo Cesar Motta, zoólogo da Universidade de Brasília (UnB)