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Gravações ocorreram entre 2015 e 2017 em cidades de Goiás, no Rio de Janeiro e em Brasília: lugares determinantes para a vida da protagonista
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Aos 5 anos, quando ouvia o barulho de um avião no quintal de casa, a criança corria para ver aquela coisa grande no céu. Estamos em Ceres, interior de Goiás, distante 280km de Brasília. É 1965. “Eu dormia e sonhava com aquilo, com o barulho do avião.” Aos 7 anos, gostava tanto de empinar pipa, que inventou uma engenhoca: “Era uma carretilha, que melhorava o desempenho da pipa na hora de voar. Ela soltava a linha mais rapidamente e recolhia também”, lembra.
Aos 9, construía aeronaves com latas velhas da casa. A criança sempre quis voar. Sempre. Aos 18, José Carlos da Silva realizou o sonho de uma vida. Foi servir a Força Aérea Brasileira (FAB). Virou mecânico de avião. Logo se destacou. Tornou-se o melhor da turma. Passou a fazer, cada vez mais, cursos de especialização. Somaram-se os certificados, as medalhas e as condecorações pelos bons serviços prestados à nação. Virou, nesse período, instrutor de cursos de preparação de solo às aeronaves. “A minha promoção foi publicada em boletim”, conta, com orgulho.
Os anos se passaram. José começou a perceber, na verdade sempre soube, que algo o inquietava. Não gostava do corpo, e sua cabeça não era exatamente de homem. Procurou ajuda numa junta médica da Aeronáutica. “Disseram que era tensão, estresse, que podia passar”, conta. Mas ele insistia que era mais do que isso. Era algo que sempre o acompanhou.
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O diretor Marcelo Díaz ao lado de Maria Luiza no Cine Brasília, onde será exibido o documentário |
SentençaEm 1998, José ouviu pela primeira vez que era transexual. Era como ele se sentia. Uma mulher, com alma de mulher, no corpo de um homem. Veio a separação da mulher e da única filha. Em 2000, o Correio Braziliense encontrou José Carlos. Era o começo de uma série de reportagens que durou uma década. Capítulos de uma história recheada de dor, preconceito e uma luta sem fim. Era o começo do filme Maria Luiza, que estreia neste domingo (24), às 15h, no 52º Festival de Brasília do Cinema Brasileiro. É o único do DF que fará parte da Amostra Vozes, na categoria nacional. Já esteve nos principais festivais de cinema no Rio, em São Paulo, na Argentina, na Holanda e no México.
Ainda em 2000, o jornal teve acesso a um laudo confidencial do Alto Comando da Caserna. Lá, o mecânico, antes condecorado e agraciado com medalhas, não servia mais para o ofício que executou por 22 anos seguidos. No laudo médico, o parecer: “Atrofia testicular por provável ação medicamentosa. Transexualismo”. E a sentença: “Incapaz, definitivamente, para o serviço militar. Não é inválido. Não está impossibilitado total e permanentemente para qualquer trabalho. Pode prover os meios de subsistência. Pode exercer atividades físicas”. Era — e ainda continua sendo — o primeiro caso de transexualidade das Forças Armadas brasileiras.
Começava, então, a luta de José Carlos para permanecer na carreira militar e para fazer a cirurgia de mudança de sexo. Com o apoio da Promotoria de Justiça Criminal de Defesa dos Usuários dos Serviços de Saúde, do Ministério Público do DF (Pró-vida), teve início a segunda parte dessa história. Afastado da FAB, começou o tratamento no Hospital Universitário de Brasília (HUB), para pacientes transexuais. Rotinas de consultas com psiquiatra e psicólogo. E, finalmente, em junho de 2005, aos 45 anos, no Hospital das Clínicas de Goiânia, foi realizada a cirurgia da mudança de sexo, sempre com o apoio do Ministério Público do DF. José Carlos deixava de existir. Deu lugar à Maria Luiza da Silva, ao que sempre foi.
Homenagens“Maria porque minha mãe, muito católica, disse que, se fosse menino, ia se chamar José; menina, Maria. E Luiza porque minha avó materna foi muito importante na minha vida”, explica Maria Luiza, a cabo reformada da Aeronáutica.
O filme, que só foi possível ser realizado graças ao Fundo de Apoio à Cultura (FAC), da Secretaria de Cultura do GDF, se chama apenas Maria Luiza. E o diretor Marcelo Díaz, brasiliense de 44 anos, casado, um filho e oito documentários na bagagem, entre curtas e médias, explica o seu primeiro longa-metragem, que contou com equipe de cerca de 50 pessoas: “É um documentário de 1h20 de duração. Rodamos entre 2015 e 2017, com filmagens em Brasília, Ceres, Goiânia, onde ela fez a cirurgia, e no Rio de Janeiro. Lugares determinantes da vida dela e de tudo que passou e viveu em cada uma dessas cidades”. E, claro, o filme conta a trajetória dela, que, há 19 anos, luta para receber as promoções a que tem direito, mesmo reformada.
O advogado de Maria Luiza, Max Telesca, 45 anos, disse ontem ao Correio que a ação que pede a nulidade do ato de reforma, em 2000, e as consequências financeiras do ato, foram causas ganhas em primeira e segunda instâncias. “Agora, a ação está no Superior Tribunal de Justiça (STJ). Tenho certeza de que o entendimento será favorável”, avalia Telesca.
No documentário, há depoimentos marcantes de pessoas da família, dos colegas da FAB e de todos que conviveram com ela e acompanharam a história de perto. “É um filme que fala de uma pessoa muito simples e sua dualidade entre ser militar e uma mulher trans”, explica o diretor. E prossegue: “Eu me interesso por histórias de superação, de transformação. Vi na Maria Luiza a história de uma senhora com uma vida muito simples, do interior de Goiás, que só queria ser aceita e continuar a carreira militar a que tinha direito, antes de ser reformada contra a vontade e sofrendo muitos preconceitos”.
Na manhã de ontem, o Correio encontrou Maria Luiza e o diretor Marcelo Díaz, no Cine Brasília. Não poderia haver cenário melhor. Em meio à montagem e à arrumação do cinema para o evento, que começa nesta sexta, a conversa foi, na verdade, uma volta à história dela, para relembrar que tudo que está no filme foi contado, com exclusividade, pelo jornal. Há três anos e meio, a reportagem teve o primeiro encontro com o diretor. A conversa, numa padaria do Sudoeste, durou uma tarde inteira. Na pasta dele, havia vários recortes das páginas onde a história de Maria Luiza foi publicada por longos anos.
Luta por dignidadeA primeira reportagem foi em 2000. De lá para cá, uma série de matérias especiais produzidas — a última, em 2017, contava sobre o fim das filmagens. Depois da cirurgia, em 2005, a luta para mudar o nome e o sexo nos documentos civis e militares e, sobretudo, a luta que ainda trava para ter de volta os direitos suprimidos. “Eu sou a única mulher militar da minha turma que continua cabo”, diz, com nítida tristeza.
Aos 59 anos, Maria Luiza mora no mesmo apartamento modesto de dois quartos, ainda da FAB, no Cruzeiro Novo. Mas a qualquer momento pode ter que deixar. Pinta, desenha, gosta de fotografia e vai à missa aos domingos, na igreja perto de sua casa. Anda muito a pé, seu esporte diário. “Caminho até três vezes por dia”, diz. Talvez explique os 56kg no corpo de 1,70cm. Extremamente tímida, Maria Luiza é muito reservada quanto à sua vida privada. Solteira, não tem qualquer tipo de rede social, nem mesmo Whatsapp. “Eu sou feliz assim. A gente precisa ser feliz com a gente mesma. Eu sou realista, sou pé no chão.”
Marcelo Díaz ouve Maria Luiza falar. Ele se emociona: “Conhecer a história e conviver com ela me fizeram um ser humano melhor”. E reflete: “A pessoa mais radical e conservadora, se vir o filme, vai se emocionar. É uma história de uma pessoa que corre atrás dos seus direitos, que só quer existir e ser aceita. Sobretudo nesse momento de tanta intolerância que estamos vivendo no Brasil e no mundo”.
E foi a vez de Maria Luiza ouvir o diretor falar. Ela olha para o cartaz com o nome dela. Parece sair dali. Um filme, claro, passou na sua cabeça. Um filme onde ela se tornou a personagem principal da própria vida. Às vezes, histórias contadas num jornal podem parar numa tela bem grande. E emocionar uma multidão. E fazer pensar. Tudo que é real não morre. Pode, até, virar filme.