RIO — Jackson do Pandeiro tinha — na performance de palco, na temática das canções — um apelo popular inegável, apoiado em humor e ritmo. Era pleno daquilo que costumamos chamar de “brasilidade” — como poucos foram antes e depois. Isso já seria motivo suficiente para celebrarmos seu centenário, que se completa no próximo dia 31. Mas essa é só sua face mais evidente.
A efeméride traz discos que evidenciam esse legado. O pesquisador Rodrigo Faour, que em 2016 editou na Universal (com Alice Soares e Maysa Chebabi) a caixa “O Rei do Ritmo”, prepara novo resgate, agora pela Sony:
— Estou cuidando da reedição de discos de Jackson por Columbia e CBS — adianta Faour, cuja edição de seu programa “MPB com tudo dentro” (no YouTube) dedicada a Jackson está entre as de maior audiência. — Era um intérprete impressionante, que nunca cantava duas vezes a mesma música da mesma forma.
Outra homenagem é “Jackson — Na batida do Pandeiro”, documentário de Marcus Vilar e Cacá Teixeira que traz entrevistas inéditas com Almira Castilho e Geraldo Correa, ex-mulher/parceira e amigo de infância do músico.
Há quem diga, por exemplo, que o canto revolucionário de João Gilberto carregava suas lições de divisão rítmica.
— João falava sempre de seu suingue especial — conta Geraldo Azevedo, que tocou com Jackson na década de 1970 e gravou em 2007, com Alceu Valença, “Já que o som não acabou”, que compôs em homenagem ao mestre.
Fronteiras abertas
O dueto com Alceu não foi acaso. Os dois bateram na porta de Jackson para convidá-lo a cantar com eles, no Festival Internacional da Canção de 1972, “Papagaio do futuro”, de Alceu.
— Ele não gostava de cabeludos, associava-os à Jovem Guarda, que, segundo ele, estava acabando com a música brasileira — lembra Alceu. — Perguntou o que desejávamos, expliquei que gostaríamos da participação dele na música. Ele estranhou. Quando disse que era um coco, uma embolada, ele arregalou os olhos, ainda desconfiado, e pediu que cantasse. Bati palmas e fui: “Estou montado no futuro indicativo/ Já não corro mais perigo/ Nada tenho a declarar”. Aos poucos Jackson foi mudando de semblante. Animado, gritou: “Venham ouvir isso aqui. Esses dois cabeludos não são cabras safados, não”.
Influente para a geração de nordestinos que injetou novos elementos em gêneros da região, Jackson era ele próprio um artista de fronteiras abertas. Silvério Pessoa, que em discos como “Cabeça feita” e “Micróbio do frevo” prestou tributo ao paraibano, lembra que ele nunca foi preso a estilos.
— Luiz Gonzaga era o Rei do Baião, Capiba era identificado com o frevo, Tom Jobim com a bossa nova... Jackson, não — avalia Silvério. — Gravou forró, baião, coco, samba, foxtrote, pontos de umbanda, música de carnaval, frevo... Os discos de Jackson poderiam estar na mesma prateleira de outros que ampliaram fronteiras, como Miles Davies, Frank Zappa, Bob Dylan, Led Zeppelin. Ele redimensionou o forró, estendendo-o.
Nesse sentido, Silvério identifica nele uma proximidade com os tropicalistas:
— Ele chegou a usar artefatos de couro, como Luiz Gonzaga, mas pouco. Assumiu uma coisa mais urbana, próxima do pop, da psicodelia. “Chiclete com banana” é isso: dá pistas da conexão da música brasileira com a americana, é ao mesmo tempo uma crítica e um convite ao diálogo.
Ao gravar “Chiclete com banana”, em 1972, Gilberto Gil deixou claro que havia já ali muito do ideário antropofágico tropicalista. Gil observa que Jackson é fruto de um cruzamento de brasis que explodiu na Tropicália:
— É um dos maiores amores que eu tenho — diz o baiano. — É um artista que nasce no cruzamento entre a vida rural brasileira e o mundo urbano de cidades de porte médio, como Campina Grande.
Tradução do nordeste
João Bosco — que em 1995 gravou “Forró em Limoeiro” e antes, em 1984, já havia feito um tributo ao Rei do Ritmo com “Bate um balaio ou Rockson do Pandeiro” — vê uma relação de complementaridade entre Jackson e Gonzaga. Ele lembra que o paraibano e o pernambucano foram os maiores responsáveis por projetar um imaginário nordestino para o resto do Brasil — equivalente ao que Caymmi fez com a Bahia:
— São artistas distintos, mas se complementam na forma como traduziram o Nordeste com sabedoria e criatividade.
Seja como pré-joãogilbertiano ou pré-tropicalista, como divulgador da tradição nordestina ou ampliador dessa tradição, Jackson chega ao centenário mantendo a relevância. Como Lenine (outro que prestou sua homenagem a ele, com “Jack soul brasileiro”) define, sem exagero:
— Jackson foi e é um dos pilares da música popular brasileira contemporânea.