RIO — Antes de ser conhecida como “Enluarada”, “Magnífica” ou “Divina”, Elizeth Cardoso (1920-1990) trabalhou como cabeleireira, balconista, operária e dançarina, entre outras atividades. De sua estreia no rádio, em 1936, até o fim da vida, a artista gravou e trabalhou intensamente, consagrada como uma das maiores cantoras brasileiras de todos os tempos, formando gerações de intérpretes que até hoje reverenciam o seu legado.
— Pode-se afirmar que Elizeth continua sendo a mais moderna das modernas cantoras brasileiras. Seu lugar na história está garantido, e sua dignidade será sempre lembrada — afirma o compositor Hermínio Bello de Carvalho, que foi amigo íntimo e produtor de diversos LP’s de Elizeth. — Quem não sabe a importância dela, precisa conhecer.
Entre a série de tributos programados, um dos mais aguardados é o lançamento digital de 26 álbuns do acervo da cantora na Copacabana, que a Universal Music, detentora do arquivo da extinta gravadora, disponibiliza na internet a partir de quinta-feira, quando serão comemorados os 100 anos da carioca. Serão 17 discos de carreira, além de um projeto coletivo, um EP de raridades e sete compilações. Entre as pérolas, “Elizeth sobe o morro” (1965), no qual ela canta Nelson Cavaquinho, Zé Keti, Cartola e a então revelação Paulinho da Viola. Outros jovens cantados no disco foram Elton Medeiros e Hermínio, que contribuíram com a parceria “Folhas no ar”.
— Lembro da Elizeth, depois de assistir à estreia de "Rosa de Ouro” (espetáculo idealizado por Hermínio em 1965). À porta do teatro, falou comigo : "Você vai produzir meu próximo disco". Minha carreira de produtor começava ali — relembra.
Outro clássico que chega ao streaming é o póstumo “Todo o sentimento”, com o violonista Raphael Rabello (1962-1995), que ganha nova edição da Biscoito Fino.
— Esse álbum todo é uma aula — resume a cavaquinista Luciana Rabello, irmã de Raphael, que tocou com Elizeth, entre idas e vindas, de 1979 a 1988. — Ela se tornou uma amiga, uma referência feminina, de dignidade, de comportamento, de artista. Ela juntava delicadeza, firmeza e elegância. Era uma dama.
Precursora da bossa nova
Elizeth nasceu no bairro de São Francisco Xavier, próximo ao Morro da Mangueira. Quando era adolescente, Jacob do Bandolim a ouviu cantando num sarau realizado por seus pais, e a levou para um teste na Rádio Guanabara, em 1936. Ela foi aprovada, mas o sucesso demoraria a chegar. Entre a estreia nas ondas do rádio até seu primeiro êxito, “Canção de amor” (Chocolate/Elano de Paula), foram 14 anos.
No final da década de 1950, quando já era considerada uma das grandes divas do rádio, do samba-canção e das principais boates, ela gravou “Canção do amor demais”, disco que lançava a parceria entre Tom Jobim e Vinicius de Moraes. Em duas faixas, “Chega de saudade” e “Outra vez”, havia os primeiros registros da batida diferente do violão de um tal João Gilberto. Era o pontapé inicial da bossa nova.
— É um de seus discos mais cultuados, mas teve uma venda ínfima na época de seu lançamento. E olhe que era um repertório da maior qualidade, era a obra de Tom e Vinicius, num disco até hoje atualíssimo — diz Hermínio.
— Não se pode falar de música brasileira sem falar de “Canção do amor demais” — afirma Haroldo Costa, responsável pelo epíteto de “Divina”. — Foi uma casualidade. O Sergio Porto me pediu para atuar como interino de sua coluna no jornal “Última hora”. E eu escrevi que ela foi divina na estreia de um show em São Paulo. E pegou.
E foi fácil de pegar. Sua voz grave, de timbre raro e repleta de emoção, influenciou dezenas de intérpretes.
'História de filme americano'
Alguns de seus discípulos foram Alaíde Costa, Ayrton Montarroyos, Claudette Soares, Eliana Pittman, Leci Brandão e Zezé Motta. Todos estão em “Elizeth Cardoso — 100 anos”, disco que a Biscoito Fino lança nas plataformas no dia 31.
— Ela marca a história da música brasileira como a ponte entre a música tradicional e a moderna — avalia Thiago Marques Luiz, produtor do projeto. — A história dela é linda, tem todos os ingredientes de um filme.
Se chegasse aos cinemas, os roteiristas teriam trabalho com tantas reviravoltas. Até alcançar o reconhecimento artístico, Elizeth também trabalhou em cabarés, clubes noturnos, circos do subúrbio carioca, onde se apresentava com Grande Otelo — um dos muitos pretendentes rejeitados por ela, assim como Vinicius e Ary Barroso —, e como taxi girl (dançarina).
— No Dancing Avenida, ela trabalhava basicamente para conseguir um prato de comida, porque não a chamavam para dançar. Seu único casamento durou poucos meses (com Ari Valdez, em 1939). Eles se separaram quando ela estava grávida do meu pai. Se hoje ainda é difícil, imagina naquela época? Foi muito duro — comenta Paulo Valdez Jr., neto de Elizeth.
— O Vinicius me deu “Apelo”, que ele fez com o Baden Powell. Por causa de um contrato, demorou para sair, e a Elizeth gravou antes. Quando me encontrou, ele falou: “Tá vendo? Era ela mesma quem devia ter gravado, a Elizeth já passou por muita coisa na vida” — conta Claudette Soares .
Admiradores internacionais
Em 1964, a cantora derrubou o preconceito quando arrebatou a plateia de um Teatro Municipal lotado para interpretar as "Bachianas brasileiras nº5", de Villa-Lobos. Outro momento marcante ocorreu em 1968, no Teatro João Caetano, quando Elizeth fez um show histórico ao lado de Jacob do Bandolim e do Zimbo Trio, unindo o choro ao jazz. Produtor do espetáculo, Hermínio lembra que teve dificuldades com o genial descobridor da cantora:
— Lembro de Jacob meio aterrorizado com aquela experiência nova de gravar ao vivo. Estava intratável, cabreiro e nervoso, veja só!
Apesar de muitas vezes negligenciada pelas gravadoras, Elizeth seguiu até o fim da vida produzindo muito e com a mesma simplicidade e elegância. E seguiu angariando fãs ao redor do mundo. Entre eles, Louis Armstrong, Nat King Cole e Quincy Jones. Sempre humilde, contudo, ela demorou para ficar confortável no papel de “Divina”.
— Vale ressaltar também a admiração que Sarah Vaughan nutria por Elizeth. Aliás, Sarah a aconselhou que nunca rejeitasse o título de Divina, título que ela, Sarah, também ostentava: "The Divine one" — comenta Hermínio.
Amiga de Elizeth, Áurea Martins lembra da generosidade da estrela:
— Ela foi uma madrinha para mim. Como me achava muito magra, um dia me convidou para a casa dela para tomar Sustagen — conta, gargalhando. — Ela tinha muito bom gosto, sabia que seu repertório passaria atual durante décadas. E ela vai atravessar épocas também.
Lives para Elizeth Cardoso
Museu da Imagem e do Som
Terça (14/7), às 18h, no Facebook (/mis.rj), o MIS promove bate-papo sobre o centenário de Elizeth Cardoso, com Haroldo Costa, Paulo Valdez, seu neto, e Pedro Ernesto Marinho.
Teatro Rival Refit
Com produção de Marcus Fernando, a casa realiza uma maratona de quatro horas, com canções e conversas. Participam nomes como Áurea Martins, Joyce Moreno e Simone. Quinta (16/7), às 16h, no Instagram (@teatro.rival.refit).
Nina Wirtti
A companhada por João Camarero (violão), Guto Wirtti (baixo) e Luis Barcelos (bandolim, )a cantora celebra a Divina. Dia 20, às 17h, no YouTube (/ninawirtti).
Mônica Salmaso
Até o final do mês, a cantora disponibiliza show dedicado a Elizeth, em pré-estreia da plataforma on-line da Casa do Choro, onde ela faria duas apresentações em homenagem à Divina, canceladas pela pandemia.
Dez LP's essenciais que chegam ao streaming
Discípulas celebram a Divina
Claudette Soares: “Ela tinha uma visão musical muito moderna. Foi uma diva, a estrela maior dos Anos Dourados”
Áurea Martins: “O sentimento dela, como ela encarnava o texto... A Elizeth vivia para a música”
Ilessi: “Elizeth é um divisor de águas na música brasileira, dona de um timbre inconfundível"
Juliana Linhares: “Quando penso nas grandes cantoras, a memória vibra os vibratos de Elizeth”
Mônica Salmaso: “A Elizeth é a professora, a cantora-mãe. Ela tinha uma intuição musical brilhante, tudo está lá”
Nina Wirtti: “A voz, a técnica apurada, uma pessoa maior. É divina, mesmo. É imortal, segue viva”
Simone: “Eu a conheci ainda criança. Elizeth era uma dama, tinha postura de rainha, sempre foi a Divina"
Simone Mazzer: "Não vejo como ser cantora sem passar pela Elizeth Cardoso"
Ayrton Montarroyos: "Ela soube se renovar, acompanhar a dinâmica da música de todas as épocas"