05 de janeiro de 2021 | 14h00
“Sem ele nada se faz/A roda da sorte é sua”. Com esses versos, a cantora e compositora carioca Cecília Beraba presta tributo a um dos mais importantes orixás presente nas religiões de matriz africana na música Exu, primeiro single de dois singles que a artista lançou no fim de 2020.
A faixa, cantada com suavidade pela voz inspirada por referências da MPB, do jazz e da música cubana, destaca a virilidade e o aspecto de mensageiro ligado a Exu.
É, porém, no segundo single, que a contemporaneidade e a ancestralidade se conectam de modo íntimo na voz de Cecília. Omolu traz uma homenagem ao orixá de mesmo nome, vinculado à cura de doenças epidêmicas. Nada mais adequado para os tempos atuais.
“Exu representa a inteligência emocional, cuida do caminho, das encruzilhadas da vida”, comenta a artista, que conta estar totalmente cercada pelas tradições do candomblé e da umbanda.
Não por acaso, quando a música foi disponibilizada para ser reproduzida nas plataformas digitais, ela celebrou em suas redes sociais dizendo que a canção foi “uma oferenda para aquele orixá que deve-se saudar antes de tudo”.
Por isso, a faixa já começa declarando que “Na frente lá vem ele, o mensageiro/Plantado bem na porta do terreiro”, referência ao fato de que Exu é tido como um guardião e colocado para proteger as entradas de casas e de locais de oração.
“É uma música também bastante filosófica”, afirma a cantora carioca, que gravou ambas as faixas durante o período de isolamento social provocado pela pandemia do novo coronavírus. Em Exu, ela conta ainda com a participação da cantora Patrícia Bastos, amapaense radicada em São Paulo. “Ouvi Zulusa, seu penúltimo álbum, até não ter mais lágrimas para chorar na faixa Mal de Amor. Quando pensei em gravar Exu, não conseguia imaginar sem ela.”
As vozes de ambas as cantoras têm timbres relativamente semelhantes, mas ainda assim formam um dueto nuanceado ao ouvinte atento.
O interessante em uma gravação feita em período pandêmico é que a afinidade artística nem sempre está combinada à proximidade geográfica: Cecília e Patrícia nunca chegaram a se encontrar presencialmente. “A música pedia a energia dela cantando, então fui atrás na cara de pau, arranjei o telefone e a convidei”, conta Cecília, lembrando dos bastidores da gravação que ela considera “um grande privilégio”.
“Sopra chagas, misérias, pestes”, canta Cecília em Omolu, música que faz referência à característica do orixá de dissipar epidemias. “Seja além de alguém que fere/Mestre, amigo, professor e guardião/Meu sol de meio-dia”, diz a letra da canção, acompanhada por um piano enérgico.
Na mitologia iorubá, Omolu nasceu coberto de máculas pelo corpo por causa da varíola, que o havia atacado por ser filho de uma relação proibida entre os orixás Nanã e Oxalá – este, marido de Iemanjá.
As feridas pelo corpo fizeram Nanã abandonar o recém-nascido Omolu ao mar, mas Iemanjá cuidou dele e o curou, o que ainda o deixou com cicatrizes profundas, o que explica por que ele é sempre representado coberto com uma espécie de manto de palha por quase todo o corpo, com exceção dos braços e das pernas, que não foram atingidos pela moléstia.
No entanto, Omolu aprendeu a tratar dessa e de muitas outras doenças, o que explica sua capacidade de curar as enfermidades, especialmente aqueles que são altamente contagiosos. Isso faz com que a divindade seja associada às epidemias, tornando a canção curiosamente propícia para os tempos contemporâneos.
A cantora lista, entre suas principais inspirações, Jorge Mautner, Elza Soares e Bola de Nieve, artistas cuja influência reverbera com clareza e pode ser ouvida em seu estilo e também nas temáticas que suas canções abordam.
Os assuntos que mais a inquietam em suas composições são extremamente diversos, segundo ela relata. “Sou muito curiosa sobre estar viva.” E nesse “estar viva” ela aborda temas que vão do “processo de relacionamento com os outros, o processo de aprendizado” até observações poéticas e questões folclóricas. “Essas coisas mais filosóficas, metafísicas me tocam profundamente”, diz ela.
Cecília se prepara para lançar, em fevereiro, um disco com composições que ela fez em parceria com Jorge Mautner, uma de suas principais referências — não só na música. “Jorge era um grande ídolo, mas quando comecei a ler os livros dele eu pirei. Ele criou uma filosofia própria e ali ele abrange tudo, desde questões humanas de comportamento até questões políticas. Li tudo dele, de frente para trás, de trás para frente”, relembra a cantora e leitora de Jorge Mautner, que também é escritor de livros como Deus da Chuva e da Morte (1962), Mitologia do Kaos (1962) e Narciso em Tarde Cinza (1969), fundador do partido do Kaos e um multiartista que completa 80 anos em 2021.
Dizem que nunca se deve conhecer seus próprios ídolos para não se frustrar com quem eles realmente são. Não é o caso de Cecília. Ela conta que, após anos cantando composições de Mautner, um dia ela foi a um show dele, chegou cedo e conseguiu conversar com o ídolo. Desse primeiro encontro, surgiu uma frutífera parceria que ela considera “uma realização, uma catarse”. “Quando eu pude conviver com ele todo dia, isso tomou outra dimensão.”
Lançar um álbum musical durante a pandemia pode ser uma decisão corajosa, e Cecília bem sabe disso. “Esse foi um disco totalmente independente, ainda mais com a quarentena no meio”, afirma a cantora. “Nesse período, acabei fazendo muita coisa de casa. Até gravei vídeo, que é algo de que não gosto”, acrescenta.
Cecília se diz preocupada com o futuro do mercado musical do Brasil. “Muitas casas de show fecharam aqui no Rio”, comenta ela, que acredita que a música se tornou uma “terra tão arrasada” que os que permanecem nessa área ou são “muito privilegiados, com muitas condições”, ou são aqueles incansáveis para quem “a música é uma sina”.
“Vamos precisar encontrar formas mais simples e mais honestas para continuar”, conclui a cantora.