06 de agosto de 2020 | 05h00
Durante 48 anos de produção, o chargista J.Carlos (1884-1950) criou mais de 50 mil trabalhos, entre caricaturas, charges, cartuns, ilustrações, letras, vinhetas, adornos e peças publicitárias. E só interrompeu porque sofreu um AVC fatal quando rascunhava um desenho, na redação da revista Careta. Mas não é pela espantosa produtividade que José Carlos de Brito e Cunha se tornou um dos principais artistas da imprensa brasileira da primeira metade do século passado, mas pela qualidade.
“J.Carlos atuou como um cronista visual, traçando os jogos políticos, as dicotomias sociais, e as nuances dos primeiros 50 anos de república no Brasil, temperados por um senso de humor ácido, debochado e crítico”, observa Rafael Peixoto, curador da exposição J.Carlos – Além do Tempo, que será aberta online sábado, 8, no site da Danielian Galeria (www.danielian.com.br).
São 84 desenhos que estarão expostos na sede da galeria, em uma casa de dois andares na Gávea, ainda fechada ao público até que haja segurança diante da pandemia. Na abertura, haverá uma live, a partir das 17h, de Peixoto com Cassio Loredano e Julieta Sobral, na página da galeria no Instagram (@danielian_galeria).
Assunto não faltará. “J. Carlos criou conceitos que até hoje fazem parte da imprensa no Brasil”, observa Peixoto. “É difícil precisar qual seria a sua principal contribuição, em função da extensão da sua obra. No design gráfico, ele desenvolveu uma liberdade criativa que rompeu com as tradições da sua época. Trouxe uma ideia de perfil editorial, adaptando a estética ao público-alvo, que foi totalmente inovadora e transformadora, não só para os jornais e revistas, mas também para a publicidade.”
Prolífico, J.Carlos trabalhou em grandes revistas do início do século 20, como Careta, Para Todos..., Fon-Fon! e Almanaque do Tico-Tico. “Por ser autodidata, ele trouxe um olhar novo e livre de vícios e preconceitos. Ao longo da carreira, optou por manter-se alheio a qualquer grupo ou tendência artística, guiando-se pela sua sensibilidade, sua atenta observação e uma fluidez no desenho inata. Se em alguns pontos a sua obra assemelha-se às buscas modernistas, dela se diferencia por uma maior liberdade e independência de cânones ou conceitos fechados”, comenta o curador.
No período entreguerras, J.Carlos alcançou uma grande produtividade, evidenciando ainda sua posição antifascista, ridicularizando com seu traço fino os ditadores dos anos 1920 a 40, como Hitler, Mussolini e Getúlio Vargas. “O que mais chama atenção em toda a obra de J.Carlos é uma aguda observação e um elaborado senso estético, que se juntam e montam uma verdadeira crônica histórica e artística que vai além do seu tempo.”
Segundo Rafael Peixoto, ao longo dos anos 1930, J.Carlos consolida uma estética própria que irá marcar toda a sua produção seguinte. “A ligeireza do traço, a libertação da relação figura e fundo, e a sintética captação das formas começam a se desenvolver de maneira mais definitiva. É desse período também a sua atuação nas revistas Careta e O Malho, em que afirma sua posição como ácido cronista político.”
O artista se interessava também pelo cidadão comum, revelando-se um exímio observador da sociedade, debochando na maioria das vezes dos mais ricos e valorizando a alegria festiva dos mais pobres, especialmente no carnaval. “J.Carlos foi um cronista visual do seu tempo, como foi João do Rio na literatura, por exemplo. O retrato social que fazia atingia a todos com seu deboche e sarcasmo. Sua obra reproduz as tensões entre classes que tinham a cidade moderna como palco de conflitos”, conta Peixoto. “E teve papel fundamental na criação da imagem do Brasil como o país do carnaval, a despeito das vantagens e desvantagens.”