CARTA A MINHA MÃE
Humberto de Campos
Hoje, mamãe, eu não te escrevo daquele gabinete cheio de livros sábios, onde o teu filho, pobre e enfermo, via passar os espectros dos enigmas humanos, junto da lâmpada que, aos poucos, lhe devorava os olhos, no silêncio da noite.
A mão que me serve de porta-caneta é a mão cansada de um homem paupérrimo, que trabalhou o dia inteiro buscando o pão amargo e cotidiano dos que lutam e sofrem. A minha secretária é uma tripeça tosca à guisa de mesa e as paredes que me rodeiam são nuas e tristes, como aquelas da nossa casa desconfortável em Pedra do Sal.
O telhado sem forro deixa passar a ventania lamentosa da noite e desse remanso humilde, onde a pobreza se esconde exausta e desalentada, eu te escrevo sem insônias e sem fadigas, para contar-te que ainda estou vivendo para amar e querer a mais nobre das mães.
Quereria voltar ao mundo que deixei, para ser novamente teu filho, desejando fazer-me um menino, aprendendo a rezar com o teu espírito santificado nos sofrimentos. A saudade do teu afeto leva-me constantemente a essa Parnaíba das nossas recordações, cujas ruas arenosas, saturadas do vento salitroso do mar, sensibilizam a minha personalidade e, dentro do crepúsculo estrelado da tua velhice cheia de crença e de esperança, vou contigo, em espírito, nos retrospectos prodigiosos da imaginação, aos nossos tempos distantes. Vejo-te com os teus vestidos modestos, em nossa casa de Miritiba, suportando com serenidade e devotamento os caprichos alegres de meu pai. Depois, faço a recapitulação dos teus dias de viuvez dolorosa, junto da máquina de costura e do teu “terço” de orações, sacrificando a mocidade e a saúde pelos filhos, chorando com eles a orfandade que o destino lhes reservara, e, junto da figura gorda e risonha da Midoca, ajoelho-me aos teus pés e repito: – “Meu Senhor Jesus-Cristo, se eu não tiver de ter uma boa sorte, levai-me deste mundo, dando-me uma boa morte.”
Muitas vezes o destino te fez crer que partirias antes daqueles que havias nutrido com o beijo das tuas caricias, demandando os mundos ermos e frios da Morte. Mas, partimos e tu ficaste. Ficaste no cadinho doloroso da saudade, prolongando a esperança numa vida melhor no seio imenso da Eternidade. E o culto dos filhos é o consolo suave do teu coração.
Acariciando os teus netos, guardas com o mesmo desvelo o meu cajueiro, que aí ficou, como um símbolo plantado no coração da terra parnaibana, e, carinhosamente, colhes das suas castanhas e das suas folhas fartas e verdes, para que as almas boas conservem uma lembrança do teu filho, arrebatado no turbilhão da Dor e da Morte.
Ao Mirocles, mamãe, que providenciou quanto ao destino desse irmão que aí deixei, enfeitado de flores e passarinhos, estuante de seiva, na carne moça da terra, pedi velasse pelos teus dias de insulamento e velhice, substituindo-me junto do teu coração. Todos os nossos te estendem as suas mãos bondosas e amigas e é assombrada que, hoje, ouves a minha voz, através das mensagens que tenho para quantos me possam compreender. Sensibilizam-me as tuas lágrimas, quando passas os olhos cansados sobre as minhas páginas póstumas e procuro dissipar as dúvidas que torturam o teu coração, combalido nas lutas. Assalta-te o desejo de me encontrares, tocando-me com a generosa ternura de tuas mãos, lamentando as tuas vacilações e os teus escrúpulos, temendo aceitar as verdades espíritas, em detrimento da fé católica, que te vem sustentando nas provações. Mas, não é preciso, mãe, que me procures nas organizações espíritas e, para creres na sobrevivência do teu filho, não é preciso que abandones os princípios da tua fé. Já não há mais tempo para que teu espírito excursione em experiências no caminho vasto das filosofias religiosas. Numa de suas páginas, dizia Coelho Neto que as religiões são como as linguagens. Cada doutrina envia a Deus, a seu modo, o voto de súplica ou de adoração. Muitas mentalidades entregam-se, aí no mundo, aos trabalhos elucidativos da polêmica ou da discussão. Chega, porém, um dia em que o homem acha melhor repousar na fé a que se habituou, nas suas meditações e suas lutas. Esse dia, mamãe, é o que estás vivendo, refugiada no conforto triste das lágrimas e das recordações. Ascendendo às culminâncias do teu Calvário de saudade e angústia, fixas os olhos na celeste expressão do Crucificado e Jesus, que é a providência misericordiosa de todos os desamparados e de todos os tristes, te fala ao coração dos vinhos suaves e doces de Caná, que se metamorfosearam no vinagre amargoso dos martírios, e das palmas verdes de Jerusalém, que se transformaram na pesada coroa de espinhos. A cruz, então, se te afigura mais leve e caminhas. Amigos devotados e carinhosos te enviam de longe o terno consolo dos seus afetos e, prosseguindo no teu culto de amor aos filhos distantes, esperas que o Senhor, com as suas mãos prestigiosas, venha decifrar para os teus olhos os grandes mistérios da Vida.
Esperar e sofrer têm sido os dois grandes motivos, em torno dos quais rodopiaram os teus quase setenta e cinco anos de provações, de viuvez e de orfandade. E eu, minha mãe, não estou mais aí para afagar-te as mãos trêmulas e os cabelos brancos que as dores santificaram. Não posso prover-te de pão e nem guardar-te da fúria da tempestade, mas, abraçando o teu Espírito, sou a força que adquires na oração, como se absorvesses um vinho misterioso e divino.
Inquirido, certa vez, pelo grande Luiz Gama sobre as necessidades da sua alforria, um jovem escravo observou: – “Não, meu senhor!… a liberdade que me oferece me doeria mais que o ferrete da escravidão, porque minha mãe, cansada e decrépita, ficaria sozinha nos misteres do cativeiro.”
Se Deus me perguntasse, mamãe, sobre os imperativos da minha emancipação espiritual, eu teria preferido ficar, não obstante a claridade apagada e triste dos meus olhos e a hipertrofia que me transformava num monstro, para levar-te o meu carinho e a minha afeição, até que pudéssemos partir juntos, desse mundo onde tudo sonhamos para nada alcançar. Mas, se a Morte parte os grilhões frágeis do corpo, é impotente para dissolver as algemas inquebrantáveis do espírito.
Deixa que o teu coração prossiga, oficiando no altar da saudade e da oração; cântaro divino e santificado. Deus colocará dentro dele o mel abençoado da esperança e da crença, e um dia, no portal ignorado do mundo das Sombras, eu virei, de mãos entrelaçadas com a Midoca, retrocedendo no tempo, para nos transformarmos em tuas crianças bem-amadas.
Seremos agasalhados, então, nos teus braços cariciosos, como dois passarinhos minúsculos, ansiosos da doçura quente e suave das asas maternas, e guardaremos as nossas lágrimas nos cofres de Deus, onde elas se cristalizam como as moedas fulgurantes e eternas do erário de todos os infelizes e desafortunados do mundo. Tuas mãos segurarão ainda o “terço” das preces inesquecidas e nos ensinarás, de joelhos, a implorar, de mãos postas, as bênçãos prestigiosas do Céu. E, enquanto os teus lábios sussurrarem de mansinho – “Salve Rainha… mãe de misericórdia…” começaremos juntos a viagem ditosa do Infinito, sob o dossel luminoso das nuvens claras, tênues e alegres do Amor.