Em “Delírios de um paraíso vermelho”, enredo do Salgueiro deste ano, o carnavalesco Edson Pereira percebeu seu inconsciente ganhando forma de alegoria e fantasia. O desfile vai propor a folia como um éden da liberdade de expressão, de um basta aos preconceitos e à miséria, onde não é pecado ser feliz. Sem que ele premeditasse, criou um lugar onírico que, na versão da vida real, o acolheu ainda adolescente, quando foi morador de rua. Posto para fora de casa aos 13 anos por pais que não entendiam sua personalidade artística, o garoto de Bangu, na Zona Oeste do Rio, pediu emprego no barracão da União da Ilha do Governador. Como ele mesmo afirma, virou um “filho do carnaval”.
- Caia na folia: Um milhão de foliões devem ir às ruas neste fim de semana; encontre seu bloco na plataforma do GLOBO
- Dicas: Como aproveitar o carnaval de rua no Rio sem passar perrengue nos blocos
Eram meados dos anos 1990, e a primeira oportunidade veio como pintor da arte, na equipe do carnavalesco Chico Spinoza. Trabalhava para, à noite, voltar à sarjeta. Até que o porteiro da escola — Wilson, de quem ele não esquece o nome — se deu conta de que o novato não tinha para onde ir após o expediente. Ofereceu que Edson dormisse escondido no barracão. Eram mãos estendidas para que o jovem construísse seu caminho, ganhasse independência, virasse figurinista, com diploma na Universidade de Iowa, nos Estados Unidos, e se transformasse no carnavalesco reconhecido pela suntuosidade na Sapucaí.
— Eu era invisível para a sociedade. E me tornei visível. Sinto como se estivesse retribuindo tudo o que o carnaval fez por mim — diz Edson, hoje com 45 anos.
Ele conta que foi somente em sessões de terapia que atentou para o fato de estar tratando um pouco de si no enredo de sua estreia no Salgueiro. As fantasias de duas alas, diz Edson, evidenciam mais essa identificação: as dos miseráveis e as do moleques de rua — temática que, pela primeira vez, ele vai abordar em seus desfiles.
Os encontros de suas experiências com os paraísos da vermelho e branco, no entanto, vão além. Para este ano, a inspiração nos enredos mais devaneadores de Joãosinho Trinta também estabelece esse diálogo: Edson trabalhou como figurinista do lendário carnavalesco em três carnavais da Unidos do Viradouro, entre eles o campeonato da agremiação em 1997. A mesma função exerceu com Milton Cunha, cuja tese “Paraísos e infernos na poética do enredo escrito de Joãosinho Trinta” esteve na base do desenvolvimento do espetáculo salgueirense que será visto daqui a duas semanas na Sapucaí.
Criatividade é luxo
Remonta ainda ao passado de Edson a opção por um carnaval mais sustentável em termos de materiais que vão parecer luxo na Avenida. Vai ter muito uso de produtos alternativos para “tirar da cabeça o que não se tem no bolso”. Serão quatro alas produzidas com cinco mil metros de sacos de lixo, decorados com lantejoulas, pintura de arte, placas de acetato reaproveitadas e restos de tecidos de carnavais anteriores.
Já no acervo do Salgueiro foram encontradas boias náuticas do campeonato da escola de 1993, com “Peguei um Ita no Norte”, do famoso samba “Explode coração”. Elas vão voltar ao Sambódromo este ano, como adereços na alegoria da Barca de Caronte. Na mitologia, explica Edson, a embarcação levava ao submundo os recém-mortos condenados pela sociedade, por exemplo, por se prostituirem ou serem homossexuais. Em seu desfile, os foliões na barca serão todos “descondenados”.
O “pecado original”, por exemplo, estará no abre-alas. Nele, Adão e Eva serão negros — historicamente, a causa contra o racismo é uma das mais caras ao Salgueiro —, representados pelo coreógrafo Carlinhos Salgueiro e pela musa Dandara Mariana. Nos bastidores, conta Edson, a escolha de Carlinhos para o personagem chegou a uma controvérsia que vai justamente no caminho contrário do que reivindica o enredo. Episódio, no entanto, que reforçaria a necessidade de se bater na tecla de questões sociais no carnaval.
— Chegaram a me dizer coisas como: ‘Vai botar o Carlinhos ali? Mas o Carlinhos é tão gay para ser o Adão’ — relata, com indignação, o artista.
Crimes homofóbicos, por sinal, estarão em pauta em outra alegoria do desfile, em que vão ser abordados vários tipos de violência, como a crescente onda de feminicídios.
— Não queria transformar o desfile numa coisa política. No entanto, o carnaval em si é uma manifestação política, mas não a suja — destaca Edson, exaltando o poder da celebração da Sapucaí no debate de temas que borbulham no dia a dia.
Nessa festa, além de pintor de arte e figurinista, o artista trabalhou na escultura, na carpintaria e na ferragem. Sua primeira chance como carnavalesco foi na Unidos de Padre Miguel, para o desfile de 2006, quando a escola ainda estava na quarta divisão da folia carioca. Entre idas e vindas, na última década ele assinou apresentações marcantes na vermelho e branco da Zona Oeste do Rio, muitas vezes apontadas pela crítica como carnavais de porte de Grupo Especial na Série Ouro, o atual grupo de acesso da Sapucaí. Neste ano de 2023, ele se divide entre o Salgueiro e a Padre Miguel, onde terá o enredo “Baião de Mouros”. Na Série Ouro, o artista foi ainda campeão pela Viradouro, em 2018.
Nessa trajetória, a grandiosidade das alegorias foi uma de suas principais marcas. Em 2019, seu abre-alas na Vila impressionou com 60 metros de comprimento. Em 2020, ele aumentou a aposta na abertura da azul e branco: eram três carros acoplados, totalizando 90 metros.