Tudo levava a crer que a Mangueira seria a campeã do carnaval 2019. A expectativa anterior à festa, com o samba cantado fervorosamente pelos quatro cantos do Rio, se confirmou com o catártico desfile da escola na madrugada da terça-feira de carnaval. Só que "tudo leva a crer" no universo da Liga Independente das Escolas de Samba pode não significar absolutamente nada, como mostrou o campeonato da Beija-Flor de 2018. Um ano depois, os jurados, de forma geral, avaliaram as escolas com rigor e critério, e a verde-e-rosa acabou campeã com um score perfeito, até "folgado" em termos de carnaval carioca, com três décimos à frente da surpreendente vice-campeã Viradouro. O quesito samba-enredo (sempre ele!) fez a Mangueira abrir a diferença, que nunca foi recuperada pela escola de Niterói. Na verdade, o hino da Viradouro foi julgado até com complacência demais: dois jurados, Felipe Trotta e Eri Galvão, deram nota 10 para uma canção muito inferior à maioria das outras do ano, com pouco sentido - como é tradicional nos enredos do carnavalesco Paulo Barros - e nenhum charme.
Se alguns quesitos tiveram jurados rigorosos, como samba-enredo e comissão de frente, em outros veio a tradicional (mas que, por sorte, anda caindo em desuso) enxurrada de notas 10. O julgamento de bateria, por exemplo, precisa definitivamente ser repensado. Das 40 notas apuradas, menos da metade não foram 10, apenas 18. O jurado Sérgio Naidin deu três notas 9,9 (para Império Serrano, São Clemente e Portela), e todas as outras escolas receberam o grau máximo. É certo que as baterias são profissionais, bem ensaiadas, mas será possível que uma não é um pouquinho melhor do que a outra? A Mangueira, com sua bossa que começava marcial e acabava em atabaques (os negros superando os militares), a Portela e suas levadas afro, referentes a orixás diversos, e o coração que batia com o samba do Império Serrano, nada disso merece um décimo a mais do que baterias corretas, mas menos criativas? A batida mais cadenciada da Mocidade, valorizando a melodia do samba, não deve ser mais bem avaliada do que a metralhadora hardcore da bateria do Tuiuti? Não custa refletir.
É claro que alguma contaminação é inevitável. O jurado pode se emocionar com um aspecto do desfile que não é aquele que ele deveria julgar e acabar beneficiando a escola. Um dos casos mais flagrantes disso aconteceu em 1998, quando "Chico Buarque da Mangueira" levou o título, um desfile fraco, com um samba bobo, mas um monstro da cultura brasileira que seduziu todo mundo. Acontece. (Aliás, a Mangueira dividiu o título daquele ano com a Beija-Flor e seu "Mundo místico dos caruanas nas águas do Patu-anu", alguém se lembra? Quem vir os desfiles e ouvir os sambas certamente perceberá, sem a emoção (e os olhos azuis de Chico) do momento, a superioridade da escola de Nilópolis.
Nomes e bandeiras continuam tendo sua força. O Império Serrano fez, decerto, o pior dos 14 desfiles. Mas será que precisava ter como default a nota 9,7? Se uma poderosa se apresentasse da mesma forma, seria julgada com o mesmo rigor? O mestre Renato Lage, um dos maiores nomes da história do carnaval, fez uma Grande Rio desenxabida, com poucas ideias, burocrática, e ainda embalada por um samba fraquíssimo. Pois suas alegorias e adereços levaram quatro notas 10, à frente, por exemplo, do suntuoso Salgueiro e da Portela de Rosa Magalhães, ao lado da beijaflôrica Vila Isabel. Terá sido justo?
Por fim, o rebaixamento. O Império Serrano, mesmo sem qualquer implicância, já estava de volta ao sábado (o do Acesso em 2020, não o próximo) desde antes do carnaval, com sua "ousadia" de transformar "O que é, o que é?", de Gonzaguinha, em samba-enredo, e com a ideia no mínimo esquisita de botar mestre-sala e porta-bandeira para dançarem sobre um tablado (os dois quesitos, aliás, nem foram os mais mal avaliados). Um descenso merecido de uma escola que ainda vive nos anos 1970, e cuja presidente teve a ideia genial de não ensaiar na quadra no pré-carnaval, para "evitar prejuízos".
A Imperatriz Leopoldinense teve graves problemas em seu desfile, mas há 20 anos, quando ela era campeã quando merecia e quando não merecia, tamanho era seu poder na Liga, isso talvez não acontecesse. Desde que foi vice-campeã do Grupo 2 em 1978 e chegou à elite, a escola de Ramos nunca tinha sido rebaixada, numa permanência de quatro décadas no grupo principal. Em outros tempos, também, talvez e poderosa Beija-Flor fosse parar no Acesso. A escola comandada pela família David teve a maior queda de uma campeã em muitos anos, saindo do primeiro para o 11º lugar, que conquistou em uma acirrada disputa com a São Clemente (para muitos bem melhor na avenida do que a Beija). É, aos poucos, talvez a batida dos surdos, caixas e tamborins esteja mudando.