RIO - A religiosidade e a força negra deram o tom dos desfiles desse domingo na Série A do carnaval. Após o dilúvio de sexta, a chuva deu trégua no segundo dia, apesar de algumas leves precipitações, o que possibilitou uma experiência visual mais fiel ao que as agremiações construíram ao longo do ano. Com a pista livre e limpa, a Estácio deixou a Sapucaí sob os gritos de "é campeã", mas viu belas participações da Império da Tijuca, Porto da Pedra e Acadêmicos do Cubango. Definitivamente, foi a noite mais forte dessa edição do campeonato.
- Sou católico, mas também não tinha conhecimento sobre a história do Jesus Negro. Precisamos mostrar isso para o povo. Há uma grande valia em tudo que mostramos aqui. Jesus pode ser negro, sim - afirmou antes de desfilar.
No fim, a emocionante passagem da comissão foi simbolizada pelo choro de vários dos dançarinos. Segundo Gabriel Areas, que representava a multidão de judeus que acompanhavam a via Crucis, a emoção foi a marca da coreografia desde os ensaios
- Vários dias nós tínhamos que parar no meio porque a gente começava a chorar. Foi um processo muito profundo de construção. Na primeira vez, que apresentamos na escola todos vieram abaixo.
Em todos os carros alegóricos, componentes negros reproduziram figuras do cristianismo normalmente representadas por pessoas brancas. A tradicional escola foi a que mais empolgou a avenida, apesar das dificuldades financeiras relatadas pelo seu presidente Leziario Nascimento e deixou a Sapucaí sob os gritos de "é campeã".
Outra escola que fez bonito, inclusive na comissão de frente, foi a Império da Tijuca. Com um enredo sobre o café, a agremiação também se apoiou na temática racial para empolgar a plateia. O que poderia ser um enredo discreto se tornou num resgate da ancestralidade e com muitas críticas sociais. Como dizia a letra do samba, "nego tá cansado, nego tem que trabalhar".
A comissão de frente, com cerca de 15 dançarinos, interpretou escravos de cafezais, com referências às opressões do sistema. Num dado momento, os homens arrancavam a pele das mulheres - na realidade, uma pele falsa, feita de látex -, para representar a libertação do corpo negro. O efeito provocado pelo material impressionou.
- Nossa ideia era fazer com que os dançarinos se 'escalpelassem' diante do público mesmo. Retirar a pele machucada é uma metáfora sobre a libertação. Por muito tempo, essas pessoas estiveram caladas. A própria mordaça que as mulheres usam é símbolo disso - diz o coreógrafo Júnior Scapin.
No Porto da Pedra, quem ditou o ritmo foi a família Pitanga. A escola homenageou o ator Antonio Pitanga, fazendo um resgate da sua carreira enquanto artista negro - as referências ao movimento negro eram várias - , e levou à Sapucaí amigos e familiares. Após o desfile, o homenageado disse que esse foi o maior presente que poderia ter tido.
- Essa é a festa mais maravilhosa e a plateia mais maravilhosa que um ator pode ter. Eu como artista nunca vi nada igual, senti os deuses na avenida. É a festa do povo, aqui que nasce a democracia.
- Nem eu sei como aguento - brincou a atriz. - É o amor pelo meu pai. Suplanta tudo.
Considerada a escola que mais arrecadou recursos antes do desfile, a Acadêmicos do Cubango chegou à Sapucaí com muita expectativa. E o resultado do desfie, sob o enredo "Igbá Cubango", que explorou a religiosidade popular brasileira, funcionou. A agremiação abusou das referências às religiões de matriz africana, como é de seu feitio. Além disso, houve críticas políticas e até uma representação de um cristo indígena.
- Viemos querendo fazer um grande desfile. Falamos de religião como várias outras escolas, mas dando espaço para todos - afirmou o presidente Rogério Belisário.
Apesar dos comentários de bastidores da suposta volúpia financeira, o presidente ressaltou que a escola precisou buscar alternativas para captar recursos neste ano, já que pela primeira vez - em mais de um década, a prefeitura de Niterói não liberou recursos para a escola.
- Este é um problema sério, que parece só crescer. Acontece com todas as escolas.
A Zona Oeste também marcou sua presença no desfile. Abrindo a noite, a Unidos de Bangu, que falou sobre a batata, acabou deixando transparecer seus sérios problemas financeiros - a escola inclusive enfrentou um incêndio no barracão em maio passado - e teve alguns problemas nos carros alegóricos. Em um, pedaços de madeira cederam, em outro uma escultura perdeu seus dedos da mão esquerda. Já a Renascer de Jacarepaguá fez um desfile correto, de louvação a Iemanjá, e trouxe várias referências baianas e do candomblé ao desfile. O samba, assinado por Moacyr Luz, de fácil refrão, conseguiu pegar bem entre o público, e a comissão de frente, representando a orixá, fez sucesso.