A primeira noite de desfiles das escolas de samba do grupo especial de São Paulo foi marcada por sambas-enredo engajados, pouca chuva — apesar dos camarotes alagados — e rostos conhecidos na avenida. A escola de samba Independente Tricolor foi a primeira a abrir os desfiles. A agremiação apresentou o enredo “Samba no pé, lança na mão. Isso é uma invasão”, baseada na Guerra de Troia e na escola da agremiação.
Os 1,6 mil componentes da escola trouxeram para a avenida paulistana referências gregas, com deuses e mitos. Um grandioso Poseidon apontava para a avenida no segundo carro. A alegoria trazia o Deus do Mar rodeado de dois dragões que pareciam flutuar sobre as águas. Emocionados, os componentes relembravam batalhas próprias dentro da agremiação: em 2018, a escola com 12 anos de existência enfrentou o primeiro rebaixamento. Em 2019, um incêndio atingiu o barracão da escola, destruiu carros alegóricos e impediu a competitividade do grupo em 2020. Um dos momentos marcantes do desfile foi a paradinha da bateria no final da noite, quando o público cantou junto com os instrumentistas o refrão do samba à capela: “Um guerreiro valente eu sou/ se preciso for, eu vou/além do infinito defender você/sou independente até morrer”.
Independente: primeira apresentação da noite agitou o Anhembi — Foto: Gustavo Schmitt
Na sequência, a Acadêmicos do Tatuapé, com 2,2 mil componentes, ganhou a avenida com uma homenagem à cidade histórica de Paraty, com um enredo que, em diversas ocasiões, fez referência ao fundo do mar e às belezas naturais. Uma das primeiras figuras a aparecer na avenida foi a madrinha da escola Leci Brandão. A cantora e compositora afirmou estar recuperada de um problema de saúde que a impediu de sambar, mas mesmo assim permitiu que caminhasse por todo o percurso. A apresentação pela escola, disse, foi a realização de um sonho de sua mãe, Dona Lecy de Assumpção, morta em 2019.
A primeira alegoria da escola contava com uma seleção de tecidos ornamentais que faziam as vezes de ondas. Os componentes, por sua vez, exibiam cabeças de peixe. Chamou a atenção do público um carro alegórico com uma seleção de crianças trajadas como indígenas. Outra alegoria graciosamente espalhou bolhas de sabão pela avenida.
Chuva e engajamento
O primeiro sinal de chuva ocorreu logo no início do desfile da Barroca Zona Sul, que iniciou a passagem pela avenida após 1h da manhã. O enredo homenageou os indígenas guaicurus, que, por mais de 300 anos, defenderam seu território das tentativas de invasão estrangeira. Para tanto, os carros fizeram alusões às expedições espanholas e ao Pantanal. Nas redes sociais, a agremiação foi homenageada pelo teor político.
Por volta das 2h10, a escola passou a enfrentar pancadas de chuva e ventos mais fortes. A intempérie, porém, não foi capaz de estragar carros e fantasias. O mesmo não se pode dizer dos camarotes, nos quais poças d'água, incomodavam os foliões.
A escola apresentou um samba-enredo que saudou a história do bairro da Zona Norte paulistana que batiza agremiação, que comemora 69 anos. O desfile foi permeado com referências dos anos 1950 — ano em que a escola de samba foi fundada – e trouxe combinações insólitas num mesmo desfile: havia uma alegoria dedicada à Nossa Senhora Aparecida, outra à Maçonaria e até Ayrton Senna foi relembrado (ele teve uma casa na Vila).
Rosas de Ouro: Pelé e Glória Maria entre os homenageados — Foto: Mariana Rosário
Com discurso forte, a Rosas de Ouro apresentou a luta do povo negro contra o racismo e por justiça. A escola trouxe imagens fortes que remeteram ao período da escravidão no Brasil. O carro que mais chamou atenção trazia em sua dianteira uma placa com a frase que o ministro dos Direitos Humanos e Cidadania, Silvio Almeida, disse quando assumiu o cargo no atual governo Lula: “'Vocês existem e são valiosos para nós”. O carro prestou homenagens, por meio de fotos, a Glória Maria, Pelé, Seu Jorge e Leci Brandão.
A escola trouxe ainda a estreante no carnaval paulista Karol Conká e mais o apresentador Manoel Soares. A comissão de frente impressionou por um barco pendulante no qual bailarinos faziam acrobacias no ar, trajados como vítimas de navios negreiros.
Mães pretas ancestrais
Seguindo na temática da representatividade racial, a escola Tom Maior homenageou as “mães pretas ancestrais”, e sua relação com as religiões de matriz africana, com um samba enredo que levantou a arquibancada mesmo após mais de sete horas de desfile e com o sol começando a nascer. Chamou a atenção uma ala grandiosa organizada de maneira vertical, que coloria a avenida como um arco-íris, onde cada fileira de componentes representava um orixá — e combinava com o carro alegórico logo atrás, levando a um belo efeito visual. Nossa Senhora Aparecida também foi lembrada no desfile.
Tom Maior: mães pretas ancestrais como matriarcas da sociedade e das religiões — Foto: Gustavo Schmitt
A noite foi encerrada por Gaviões da Fiel e seus 2 mil componentes. Celebrando a liberdade religiosa, a escola fez referência a Chico Xavier e a Jesus Cristo. A agremiação contou com um empurrãozinho importante: a arquibancada cantava a plenos pulmões o samba-enredo e o público do Anhembi foi tomado por um clima de comoção.
— A verdadeira preparação para o Carnaval é a vida — garantiu.