A dolce vita talvez tenha perdido muito de seu brilho e esteja com os seus dias mais que contados, porém ainda existe na Itália uma resistência suave e intuitiva no coração da Cidade Eterna. São oito da manhã, e Noemia d’Amico já está de pé, de espresso tomado e em plena ebulição, celular na mão, pronta para criar mais uma história de sua rotina sempre surpreendente. Não há um dia igual ao outro para a femme du monde que trocou o Rio por Roma nos anos 1980, para viver uma história de amor com o armador italiano Paolo d’Amico, presidente do grupo d’Amico, líder mundial no transporte marítimo de cargas e petróleo.
Ele é de origem napolitana e ela é carioca, vai daí que tudo ao redor nos abraça de imediato, nos aquece e nos faz lembrar (ou apresentar dependendo da sua idade) uma película da Cinecittà em sua forma original com um charme de um Rio de outrora, mais genuíno e relaxado: é bossa nova com Fellini, couture e biquíni, democracia e nobreza, a grande beleza em sua melhor tradução. E tudo na maior discrição, sem chamar a atenção dos paparazzi (caso ainda existam), nada de coluna social ou, pior, selfies e Instagram mostrando cada passo de sua intimidade.
— Não é nada proposital, apenas achamos que a vida é muito mais divertida e simples quando nos desligamos de tudo. E claro que uma conversa bem animada à mesa com poucos e bons deve ser sempre impublicável — afirma Noemia.
Para conhecer Paolo e Noemia de fato, difícil é conseguir encontrá-los em sua intrépida jornada pelos quatro cantos, sete mares e cinco continentes (“Nada mais natural, afinal nos vimos pela primeira vez dentro de um avião!”, conta ela). Vivem entre Roma, onde moram no belíssimo Palazzo Caetani, um andar acima da Embaixada Brasileira no Vaticano, e Paris, Montecarlo, Londres, Tóquio, Cingapura e Nova York, comandando os negócios da companhia de navegação e também a comercialização dos vinhos que produzem na Villa Tirrena. Trata-se de um delicioso blend de vinícola, relais e galeria de arte a céu aberto entre a Toscana e a Úmbria, equidistante uma hora e quinze minutos da capital e de Florença Desde 1985, eles fazem do domaine seu refúgio e dos quatro filhos, o empresário Antonio Carlos e a cineasta Francesca (ambos nascidos no Brasil, do primeiro casamento de Noemia com o marquês italiano Leopoldo di Mottola), a fotógrafa Alessia e da também empresária Antonia, além de esconderijo secreto de astros de Hollywood — a lista é segredo, deles e de seu sucesso como empresários e anfitriões.
É na casa — uma construção medieval do século XVI restaurada pelo casal, com oito quartos e salões decorados no melhor estilo cosy chic de Noemia — e na magnífica Torre del Sole, com vista para Civita di Bagnoregio — um vilarejo tombado pela Unesco incrustado sobre rochas vulcânicas —, que ela recebe para almoços. Suas mesas são uma atração à parte — ai de quem não reparar. As refeições poderiam ser intermináveis em seus jardins das delícias contornados por ciprestes, roseiras, limoeiros oliveiras e obras de arte escolhidas a dedo.
— Escolhemos cada peça juntos, e nosso amor pela arte nos uniu ainda mais. Cada escultura remete a um tempo, a uma memória, a uma passagem da nossa vida — diz Paolo.
Aqui, nada de galerista ou curador, é tudo fruto de suas paixões e amizades profundas, então preparem-se para uma viagem com Anish Kapoor, Banksy, Marc Quinn, Vettriano, Irmãos Campana, Lucio Salvatore, Edgard Duvivier e grande elenco. Um dos destaques é o jardim de esculturas feito em homenagem ao amigo Mark Shand, escritor britânico, explorador, exímio viajante e defensor dos elefantes. Morto em 2014, ele para sempre segue vivo em um santuário perfumado por canteiros de alecrim ou alfazemas e rodeado por animais esculpidos por nomes como Emily Young, Leo du Feu, Georgina Barclay e Nilesh Mistry.
Obra-prima feita a quatro mãos por Noemia e Paolo, o vinhedo de onde sai a produção já começa a fazer ruído no mundo dos vinhos. O Chardonnay Falesia, da safra de 2016, recebeu o prêmio 5 Grappoli deste ano, um dos mais importantes de um país que torce o nariz para todo e qualquer vinho que meio mundo aprecia sem moderação — além disso, foi o rótulo escolhido para o serviço de bordo da comitiva do Papa Francisco à Colômbia no ano passado.
— Não poupamos nenhum esforço para que nossos vinhos valorizem cada vez mais nossa identidade regional. A vida no campo reforçou ainda mais os nossos laços e cumplicidade — diz Noemia.
Outro rótulo da casa, o Cabernet Franc Atlante de 2014, foi medalha de ouro no Decanter Wine Awards de 2018, espécie de Olimpíada da vinicultura mundial.
— Mergulhei em um mundo totalmente dominado por homens, altamente competitivo e às vezes até agressivo, mas nunca me intimidei por isso — afirma a carioca, uma das eleitas pelo jornal La Repubblica para estrelar o livro “DiWine, Storie di Donne e di Terre da Amare”, que conta a história de sucesso de algumas das mais importantes produtoras de vinho da Itália.
— Hoje, há muitas mulheres excepcionais à frente de grandes vinícolas. Temos a delicadeza das uvas, o amor incondicional pela vinicultura e a força de um terroir para tocar este negócio.
Na cantina, ao lado do enólogo francês Guillaume Gelly, Paolo e Noemia, que é neta de portugueses emigrados do Porto, acompanham a evolução de seus sete rótulos combinados com castas autóctones e francesas que descansam sobre tonéis de carvalho numa adega-biblioteca sob os jardins, iluminada por velas e ambientada pela voz de Maria Callas (“E quem não dorme muito melhor ao som da diva?”, pergunta ela). Um dos best-sellers d’Amico, o Noe é um blend de Grechetto, Trebbiano e Pinot Grigio, pensado para o clima brasileiro e, segundo ela, que batiza o rótulo, “leve e perfeito para ser tomado ao pôr do sol, num lindo bar com vista para a praia”.
Apaixonada pelo mar e pelo Rio, Noemia levou o melhor de sua safra para alguns endereços-chave na cidade, como Gero, Cipriani, Satyricon e Country Club, além do Eataly, o templo universal da gastronomia italiana em São Paulo.
— Mas, quando chego ao Rio, a primeira coisa que bebo é uma boa caipirinha! — avisa.
Anfitriã à moda clássica, nada em seu domaine , seja na colheita das uvas, seja na escolha do cardápio de sua horta orgânica, é aprovado sem passar pelo seu crivo. Comandados com classe e pulso firme, o negócio e a rotina da villa, que até 2015 era assunto de família, só foram abertos ao público depois que seus filhos ganharam o mundo. Hoje, o lugar se ergue sobre as calanques da Tuscia, no coração etrusco da Itália, como destino dos sonhos para quem busca sossego e aquele filtro Bertolucci diante dos olhos.
— Chegamos aqui, onde só havia ruínas e vestígios de um vinhedo de 1500, e nos encantamos com a energia e a luz da região. Foi amor à primeira vista, como tudo em nossa vida — lembra Noemia. — Ao mesmo tempo que é um homem de negócios e superdinâmico, Paolo é um sonhador e cheio de ideias maravilhosas. Sem ele não seria possível realizar esse projeto que começamos do zero.
Noemia tem a primeira e a última palavra, e dá o seu toque e charme a tudo que faz, imprimindo o DNA tropical com perfume toscano que conquista a todos.
— A Noemia é uma das pessoas mais generosas que já conheci, ela tem o melhor do brasileiro, essa positividade e esse otimismo que nós, europeus, não alcançamos — diz Paolo, que aprendeu com a mulher a falar português, amar o Rio e fazer da cidade seu segundo lar. — O Rio é o lugar ideal para recarregar as energias, tão particular e intenso, denso e adorável como Nápoles.
A biografia de Noemia Osório d’Amico, com perdão do clichê, é, sim, um conto de fadas. Formada em Psicologia pela Universidade Santa Úrsula, filha do casal 20 do café soçaite carioca Maritza e Antonio Carlos do Amaral Osório, nossa personagem começou a carreira nos anos 1980 como deleguée da Christian Dior na Europa. Por 12 anos, foi relações-públicas da maison, na era do estilista Marc Bohan, e responsável por todo licenciamento das peças no Brasil.
— Herdei dos meus tempos da Dior o pragmatismo e a paixão pelo trabalho minucioso. Certamente por isso, tudo que eu faço na vida tem um conceito boutique, desde administrar a minha própria casa em Roma à Villa Tirrena e à produção dos vinhos. Valorizo a qualidade, não a quantidade — explica ela.
Algumas tradições são importantes manter, nem tudo merece ganhar um toque futurista, uma cifra. Essa visão empreendedora atraiu a supereditora francesa Assouline a convidá-la para participar do livro “The italian dream”, que viaja por propriedades mágicas da Itália com imagens da fotógrafa Aline Coquelle e textos do conde Gelasio Gaetani d’Aragona Lovatelli, membro de uma das famílias mais antigas do país. Em uma das fotos, Noemia caminha pelo jardim vestida à sua moda, no seu jeito único de combinar estilos e sobrevoar tendências — um retrato atual de sua personalidade, de seu caráter inventivo e de sua mente inquieta.