Uma histórica e magnífica obra da cultura popular nordestina, da autoria de Francisco das Chagas Batista
A ULTIMA PELEJA DE NICANDRO NUNES DA COSTA COM BERNARDO NOGUEIRA
Respeitada a ortografia da época
Nicandro
— Eu sahi da minha casa
Fui visitar o Nogueira
Me disseram qu’elle s’tava,
Na sua hora derradeira
Foi certo, pois o achei
C’o a vela na cabeceira.
—Meu collega, estás doente
Pois eu vim te visitar,
Se teu mal fôr muito grave
Não o posso remediar.
Porem, amigo sincéro
Eu venho te consolar.
Nogueira
—Collega Nicandro, adeus
Eu fico muito obrigado
Em te abalares a vir
Visitar o teu creado.
E’ chegada a minha hora.
Porem estou consolado.
Nicandro
—Nogueira qual o teu mal
Eu quero muito saber,
Se não te trago remedio
Mas desejo o conhecer,
Quem não tem pena do proximo
Não se lembra de morrer,
Noqueira
—É muito grande o meu mal;
Eu me acho esmorecido,
Parece que o meu corpo
Por dentro é todo moido.
Doe-me a cabeça e o rosto.
Pés, mãos, olhos e ouvido.
Nicandro
—Quem era como Nogueira
Que quando elle falava
0 povo todo em silencio
Admirado ficava:
Qual o ronco do trovão
A sua voz echoava !
Nogueira
—Meu collega, o homem são
Não é igual ao doente.
Fala 0 doente sem força,
O são arrogadamente.
Vive 0 doente gemendo
E o são vive contente.
Nicandro
—Isto é certo, meu collega.
Chegou afinal teu dia.
Porem ainda tens vivo
0 estro da poesia,
Conheces o paganismo !
E entendes mytologia !
Nogueira
– Da vida, a doença tira
Todo o goso e prazer,
Mas com o poeta fica
Arte de versos fazer
O estro da poesia
Com elle ha de morrer.
Nicandro
—Baccho também era Deus
Vulcano, Apollo, Neptuno,
Saturno, Marte, Plutão,
Venus, Minerva e Juno,
Haver tanto Deus na fabula.
Isso é o que eu repuno.
Nogueira
—Ora isso não é nada;
Houve mais Jupter e Rhéa
Que teve o filho alimentado
Pelo leite d’Amalthéa;
O sol éra o Deus Phebo
A quem adorou Neméa.
Nicandro
—Minos, Rhadamanto e Acho,
Cada um juiz superno
Segundo a idolatria
E seu fabuloso inferno;
Não tinham veneração
Ao supremo Deus Eterno.
Nogueira
—Bucolion desposou
As nymphas e as Naiades.
E nos bosques habitava
Diana com as Driades,
E muitas honras tiveram
Os heroes Abatiades.
Nicandro
—Neptuno era Deus dos mares
E dos infernos Plutão,
Vulcano côxo da perna
Forjava raio e grilhão,
Com o pomo da discórdia
Minerva fez confusão.
Nogueira
—Meu collega eu sou christão
Tive a agua do baptismo,
Tenho fé que essa agua
Me livrará do abysmo,
Não sigo a lei de Luthéro
Nem também a do atheismo.
Nicandro
—Eu sei que tu és christão
E segues a lei catholica.
Segues a Santa Doutrina
Da nossa crença apostólica.
Foges do mahometismo
E da crença diabólica.
Nogueira
-No tempo que eu podia
Sempre busquei confissão,
Mas logo vi-me em trabalho
E fugi de reunião,
Tenho medo de cahir
Dentro de uma prisão.
Nicandro
Tenho fé, meu bom collega,
Que Deus, senhor de bondade,
Conhece mais do que nós,
Da sorte a diversidade,
Elle te dará perdão
Na suprema Eternidade.
Acho boa esta doutrina,
—E’ lição de nossos paes,
O homem que é christão,
E crê em Christo, assim faz,
Seguindo este caminho.
De errar, ninguém é capaz.
Nogueira
—Sò não ia em toda igreja
Temendo uma traição,
Porque se fosse cercado
Não me entregava a prisão.
Desobedecia á força
E também ao capitão…
Nicandro
—Não estás errado, Nogueira,
No teu modo de pensar;
Preso, nem p’ra comer doce,
—Quem quiser vá esp’rimentar,
Se 0 doce fôr de assucar
Na bocca ha de amargar.
Nogueira
—Já bebi desse xarope
Quando cahi na prisão;
Boi solto se lambe todo,
Preso, de algema e grilhão,
Não bebe ás vezes que quer
Nem sempre encontra ração.
Nicandro
—De perigos e trabalhos
O homem deve fugir.
Fecham-se as portas da paz,
Vê as do cárcere se abrir
E o tronco já aberto
0 grilhão pesado tenir.
Nogueira
-Se é casado não se deita
Em os braços da consorte,
Não gosa mais seu agrado,
Terrivel é sua sorte
Entre a forca e a guilhotina
Deus lhe dê uma bôa morte.
Nicandro
—Nogueira, uma bôa morte,
Vinda pelo Creador,
Havendo arrependimento
Em falta do confessor,
Morre alegre o moribundo
Consolado com a dôr.
Nogueira
-0 meu mal provem da lucta
Que eu tive com o Vicente :
Que raptou minha parenta
E ficou ali contente ;
Pensando que eu tinha medo
Porque elle era valente.
“Aonde elle, stava eu fui
Buscar a depositada,
Disse-me o dono da casa :
Não lh’a entrego nem por nada.
Só depois de muita luta.
Tiro, talho e cutilada.
“Nisto saltou o Vicente
E 0 noivo seu irmão;
Eu só com elle lutei
E os outros com o João,
Quando a lucta se acabou
O noivo estava no chão.
“Eu só, lutei com o Vicente
Fóra dos meus camaradas,
Vicente com uma faca
Deu em mim duas furadas,
Eu com meu espadagão
Lhe dei muitas cutiladas.
“Nisto eu 0’uvi dizer:
Matamos o valentão !
O Vicente bem ferido
Ficou estirado no chão,
Levamos a moça em paz
Feita estava a obrigação.
“0 Vicente no barulho,
Duas facadas me deu,
0 que pude fazer fiz.
Porem nada me valeu,
Custaram muito a sarar
E é dellas que morro eu.
“Os 12 apostolos de Christo
Me toquem no coração,
Os soffrimentos da Virgem
Maria da Conceição,
No desamparo em que estou
Me ouçam em confissão.
“Salvaram-se Magdalena,
E Dimas o bom ladrão :
Foi concedido ao Longuinho
A sua vista e perdão ;
O anjo de minha guarda
Me ouça de confissão.
“Meu Jesus, meu Redemptor
Me dê firme contrição,
E o sangue que cahiu
Da Cruz, ensopando o chão
Perante as tres potências
Me ouçam de confissão.
“Quero a imagem do Senhor
Meu Jesus cruxificado,
Porque na hora da morte
Quero tel-o a meu lado
Para pedir-lhe perdão
De tudo quanto é peccado”.
Nicandro
—E alli fechou os olhos,
Abriu a bocca e expirou,
Entregou sua alma a Deus,
Na terra o corpo deixou,
Deus o fez sahir da terra
E em terra elle se tornou.
•Nicandro com o Nogueira
Eram mesmo que irmão,
0 parentesco que tinham
Era o de Eva e Adão;
Como Castor e Polux
Viviam em reunião.
•Adeus, adeus, Pagehú
Meu extremado sertão,
Nunca mais verás Nogueira
Glozar em uma funcção,
Nem também verás Nicandro
Glozar com o copo na mão.
“Padre Nosso Ave Maria
Reze todo o fiel christão.
Pela alma de Bernardo
Que morreu sem confissão,
E offereça-os a Deus
P’ra dar-lhe a santa mansão.