Uma histórica e magnífica obra da cultura popular nordestina, da autoria de Francisco das Chagas Batista
Respeitada a ortografia da época
Célebre peleja de Manoel Cabeceira com Manoel Caetano
Manoel Caetano
– Deus vos guarde, meus senhores,
Que estou cantando bem ;
Quem é o Manoel Cabeceira,
Dos cavalleiros que vêm ?
Pode ser cantor de fama, –
Mas, p’ra mim não é ninguém .
Manoel Cabeceira
– Negro Manoel Caetano,
Focinho de Papavento,
Tanto eu tenho de vermelho
Como tú tens de cinzento :
Porque entraste em Moreno
Sem o meu consentimento ?
Manoel Caetano
– Não preciso de licença,
Para cantar no Moreno :
Eu para dar em cantor
Occupo qualquer terreno;
Homem que rouba cavallo
Passa a noite no sereno.
Manoel Cabeceira
– Negro, trate com respeito,
Não seja tão atrevido ;
Passo a noite no sereno
Atraz de negro fugido;
Você pode ser captive
E andar aqui escondido.
Manoel Caetano
Senhor Manoel Cabeceira,
Pode inchar o seu «gogó».
Quanto mais estremecer
Mais eu lhe dou de cipó ;
Hoje eu lhe trago apertado
Como rato no quixó.
Manoel Cabeceira
– De onde veio esse negro
Do cabello pixaim ?
Que está parecendo ser
Da familia de Caim ?
Nunca gostei de mulato
Porque é gente ruim !
Manoel Caetano
– Voce me chama de negro
Do cabello pixaim ?
Meu cabello leva banha
E o seu leva toicim ;
Me diga “seu” sarará.
Quanto você deu por mim ?
Manoel Cabeceira
– Negro, encurta essa lingua,
Vae conhecer teu logar;
Olha que eu sou homem branco
Que nasci para mandar ;
Eu não sou da tua igualha,
Muleque pé de “xambar”.
Manoel Caetano
– Me comparou com a cabra
Sem eu ser do seu chiqueiro ?
Está me chamando negro
Sem eu custar seu dinheiro ?
Se quizer ser respeitado,
Respeite o negro, primeiro.
Manoel Cabeceira
– Negro, podes ir embora,
Porque de ti não preciso ;
Tú não podes cantar mais
No terreno em que eu piso ;
Aqui, na Chã do Moreno
Caso, confesso e baptiso.
Manoel Caetano
– Você a mim não baptisa,
Porque já sou baptisado,
Não confessa e nem me casa,
Porque eu já sou casado;
Quedê a tua batina
Vigário descoroado !…
Manoel Cabeceira
– Senhor Manoel Caetano,
Eu sou Manoel Cabeceira,
Tenho montes elevados
Que ninguém sobe a ladeira;
Hoje aqui você verá
Isso, quer queira ou não queira.
Manoel Caetano
– Senhor Manoel Cabeceira,
Mais alta é a Borborema,
Mas eu subo em qualquer canto
Sem temer que o peito gema;
Quanto mais você que é baixo
E que já tomei-lhe a extrema.
Manoel Cabeceira
Manoel Caetano, eu agora.
Preciso te declarar
Que no assumpto cantoria
Nunca achei, tomára achar
Um cantador de viola
Que me fizesse calar.
Manoel Caetano
– Então eu vou dar um páo
Para você se atrepá,
No tronco, eu boto : uma onça,
No meio um maracajá.
Em cada galho um inxú
E no olho um arapuá.
Manoel Cabeceira
– Eu passo fogo na onça
E derrubo o maracajá,
Chamusco os inxús a faixo,
E queimo o arapuá ;
Deixo o páo limpo indefeso
P’ra você nelle trepá.
Manoel Caetano
Saiba, senhor Cabeceira
Que eu vinha em sua batida
Como caetetú por lóca,
E mosquito por ferida ;
Você caiu-me nas unhas, ‘
Vae encontrar grande lida.
Manoel Cabeceira
– Saiba, senhor Caetano,
Que eu andava em sua fama
Como macaco por côco,
Como trahira por lama ;
E o “peixe aonde se mata
No mesmo lugar se escama.
Manoel Caetano
– Hoje aqui ha de vê
Como Caetano dá nó,
Como Cabeceira cai
Como peixe no anzó;
Já que não podes commigo,
Vai caximbá que é mió.
Manoel Cabeceira
– A ponte de Caxangá,
Foi feita por giringonça ;
Peia é comer de negro,
Negro é comer de onça;
Te prepara p’ra apanhar
Negro da cabeça sonsa.
Manoel Caetano
– A ponte de S. Antonio
Foi feita por certa escala;
Bacalhau comer de cabra,
E cabra comer de bala;
Você pensa que me dá
Mas você arrasta a mala.
Manoel Cabeceira
– Manoel, vi tua familia
Em Punaré de Bondó;
Tua mãe vendia tripas,
E o teu pae mocotó;
Teu avô vendia azeite
Lambuzava tua avó.
Manoel Caetano
Tambem vi tua familia
Lá no porto de Macáu:
Teu pae era um cabra velho
Tocador de birimbáu:
Tua mãe uma curuja
Morava em ôco de páu.
Manoel Cabeceira
– Hontem eu vi tua mãe
Deitada dentro de um ninho;
Mais tarde foçando a lama,
Com uma argola no focinho,
Mastigando nó de canna
Com um bando de bacorinho.
Manoel Caetano
– Eu tambem vi tua mãe
Na capoeira amarrada,
Comendo capim de planta
Se espojando encabrestada ;
Parece muito contigo,
Tem até a cor rudada.
Manoel Cabeceira
-“Seu” Capitão João de Mello
Dê licença, sem demora,
E veja eu rasgar um negro
No cachorro da espora!
Manoel Caetano
– Senhores que estão na casa
Do capitão João de Mello
Venham ver como é que um negro
Estraçalha um amarello!
O dono da casa, vendo que os cantadores queriam brigar, mandou suspender a cantoria e procurou evitar o conflicto.
Os dois contendores olharam-se, comprehenderam que ambos eram bons repentistas e tinham coragem igual. Então, apertaram-se as mãos e se tornaram bons camaradas.