Os navegadores
(Ludoterapia é uma técnica psicoterápica de abordagem infantil que se baseia no fato de que brincar é um meio natural de auto-expressão da criança.)
Este pequeno e reflexivo texto tem a pretensão de, poeticamente, nos levar de volta aos anos da infância. Como se estivéssemos num passeio de gôndola nas águas de Veneza.
Queremos passear pelas boas lembranças e reviver as peraltices praticadas durante anos – que acabaram modulando nosso caráter e a maioria das nossas atitudes quando adultos.
– Mãe, deixa eu ir bem ali, fazer uma coisa?
Preocupada com o modelo educacional e com a construção do homem a partir de uma criança, a (minha) Mãe argumentava:
– Ali aonde, e fazer o que?
E nós, incutidos em falar apenas as verdades, respondíamos:
– Fazer um pouco de cerol!
E ela, vigilante, asseverava:
– Vá, mas volte logo!
E lá íamos nós, dispostos a caminhar cerca de 5 Km, com duas e até três lâmpadas queimadas para coloca-las na linha do trem, esperar a passagem do dito cujo, e, depois apanhar o pó de vidro que seria adicionado à cola e se transformava no cerol para a pipa (no meu Ceará, também chamada de “arraia”).
Na parte da tarde, depois de uma boa soneca pós-almoço e a feitura dos deveres de casa da escola, era sentar na ponta da calçada com pedaços de cacos de louça, extrair o pó para limpar todos os botões do time. Ali, os nossos times já recebiam os nomes de Santos, pelo excesso de botões pretos (Dorval, Mengálvio, Coutinho, Pelé e Abel), o Flamengo, Vasco, etc., conforme a preferência de cada um.
Quando o sol esfriava, a pelada na rua. O dono da bola e o mais velho da rua escolhiam os times. Às vezes eram jogadas várias partidas de 10 gols. Quem fizesse os 10 gols primeiro, era o vencedor e o perdedor dava lugar para outro time.
Fora disso, era jogado o “gol à gol” – com bola de meia, com dois jogadores de cada lado. Um chutava e o outro defendia. Tudo acabava quando a escuridão da noite dizia: cheguei! Ou, quando a mãe aparecia no portão e determinava: chega! Tá na hora de entrar para banhar!
A pintora de telas imaginárias
A noite chegava, e tudo voltava à rotina: quem não tinha televisão em casa, se dirigia para uma praça onde havia um televisor público, ou pegava um tamborete e se postava pelo lado de fora na janela do vizinho – quando o vizinho era bom e amigo. Quando não era uma boa vizinhança, a janela sequer ficava aberta.
Os anos passavam, os pelos pubianos apareciam nos meninos e nas meninas, a fase ludoterápica e a idade mudavam. As meninas encontravam mais motivos para se postarem diante dos espelhos, observando o crescimento dos seios e o arredondamento das ancas, e ambos momentos avisavam que uma mulher estava chegando. Chegava a hora de trocar de brinquedos. Nada mais de bonecas ou casinhas de ensaios de culinária. Chegara a hora dos bebês.
E, assim, tirando uma “bobagenzinha” daqui e colocando outra dali, estava sendo posto um ponto final nos bambolês, nas petecas, nos escorregas, nos balanços, nas corridas do saco e noutras tantas brincadeiras que, desapareceram e abriram espaços para os “xópis centeres” da vida moderna.
A professora disciplinadora
Até mesmo as meninas, que um dia se auto-afirmaram como “fessoras”, proferindo aulas imaginárias para turmas idem, começaram a aparecer nos xópis, com saias que mal cobrem as calcinhas e são usadas, especificamente, para possibilitar a amostragem das tatuagens nas curvas das coxas roliças, muito bem depiladas e provocativas.
As mudanças visceralmente intempestivas nada mais são que o exagerado consumo de uma cultura globalizada e, lamentavelmente, descaracterizada, como em mais de uma oportunidade opinou Ariano Suassuna. É uma cultura deturpada, com valores estereotipados que destroem mais que constroem.
A master chef
A partir daí as cenas mudaram nos palcos da vida dos teatros das famílias. Pais, tanto quanto mães, deixaram de ser o “porto seguro” de alguns, e se transformaram nos chatonildos e castradores de plantão. Os narizes, que antes acompanhavam as cabeças no ato obediente, tomaram posições horizontais e se exacerbaram num enfrentamento que está destruindo aquela poesia infantil da convivência.
– Você vai aonde filho(a), posso saber? Pergunta a mãe.
– Não te interessa. Que saco! A vida é minha! Responde o(a) antes obediente filho(a).
É assim, ou não é?
A poesia macia de Cora Coralina na vida do jovem, foi substituída pelo texto real de Plínio Marcos.