RIO — Dentro da realidade cruel de um conflito armado , um olhar sensível para prestar assistência às mulheres pode fazer toda a diferença. É este o princípio que nos últimos 11 meses guiou o trabalho da capitã de corveta brasileira Márcia Braga na Missão da ONU na República Centro-Africana (Minusca). Aos 44 anos, a oficial da Marinha, que se define como uma idealista, se dedica à criação de estratégias de planejamento militar para defender os direitos femininos neste país do coração da África.
A principal vulnerabilidade delas é à violência sexual. Existem graves e sistemáticas acusações, inclusive, de abusos contra mulheres e crianças por soldados da ONU. Também há sequestros e assassinatos durante choques entre grupos rivais.
Quando Márcia chegou à República Centro-Africana (RCA) — vinda de Teresópolis, no estado do Rio de Janeiro —, os esforços de defesa das mulheres não estavam plenamente desenvolvidos na missão, que tem 13.595 membros com mandato focado na proteção dos civis. Ela estabeleceu conselheiros de gênero e viajou a várias localidades para treinar os contingentes civil, militar e policial da força da ONU sobre a importância de oferecer atenção especial às mulheres.
— A perspectiva de gênero ajuda a planejar a operação, como organizar a patrulha nas ruas, por exemplo. Começo mapeando as áreas de risco, entendendo quais são os grupos mais vulneráveis. Assim, as operações podem ser mais efetivas — explica a capitã.
Rotas de ameaça
Ex-colônia francesa, a RCA vive em guerra desde 2013, quando a coalizão rebelde majoritariamente muçulmana Seleka derrubou o então presidente François Bozize, provocando represálias da milícia cristã Anti-Balaka (anti-espada, nas línguas sango e mandja). Todos os lados são acusados de graves violações dos direitos humanos e até genocídio. De acordo com a Human Rights Watch, grupos armados controlam cerca de 70% do território, enquanto dados da ONU indicam que até 2018 havia quase 650 mil deslocados internos.
As mulheres na RCA ficam muito expostas a violações quando caminham longas distâncias para buscar água e lenha ou para acessar plantações. Às vezes, os trajetos, percorridos em grupos, chegam a vários quilômetros para as deslocadas internas, que ainda dependem das suas pequenas produções de subsistência para se alimentar.
A partir dos relatos destas vítimas, com quem a capitã se reúne para escutar suas narrativas de medo e sofrimento, aparecem projetos que, mesmo sem eliminar o conflito em si, reduzem as suas vulnerabilidades. Como, por exemplo, a criação de hortas comunitárias em áreas seguras, para que estas sejam fonte de sustento e de renda; a instalação de bombas de água em pontos estratégicos; e, ainda, o uso de iluminação com painéis solares, porque o escuro facilita as violações sexuais depois do pôr do sol e dificulta a identificação dos seus responsáveis.
Hora de voltar
O caminho que Márcia fez para chegar até as mulheres centro-africanas também foi longo. Ela começou sua trajetória profissional como professora por sete anos, depois se tornou analista de sistemas da Marinha no Rio para, enfim, realizar o antigo sonho de integrar uma missão da ONU. Após ter participado de treinamentos especializados em pespectivas de gênero, se voluntariou para viajar à RCA. Foi a sua primeira missão de paz, e provavelmente não a última, ela conta.
A hora de voltar agora já se aproxima: 23 de abril próximo, quando completará um ano no país africano. Seu desejo agora é voltar para casa e, aqui, continuar a espalhar o conhecimento que adquiriu:
— Sou uma pessoa idealista, então havia um lado meu que queria fazer algo. Sempre acredito que podemos fazer a diferença. Foi uma realização, e a volta será difícil. Você sai de todo o seu conforto, mas às vezes é assim que se encontra.