Bitônio o velho contador de estórias que virou eremita
Meninos, se aproximem. Peguem seus banquinhos e fiquem prestando atenção, sem cochilar, que vou lhes contar uma estória – que, talvez um dia vire história.
Na sequência, ele mesmo, Bitônio, puxou para mais perto o seu tamborete, ao tempo que limpava o cachimbo, preparando-o para mais um suprimento de fumo. Eram aquelas duas coisas que lhe davam o prazer: a atenção da meninada que compunha o “auditório”, e o prazer tragado do velho cachimbo de fumo.
Sentado, limpando a garganta com um pigarro enquanto acendia a “labareda” do tição para tocar no cachimbo, Bitônio atreveu-se a perguntar:
– Tá todo mundo prontinho prumode prestá atenção?
Como se estivessem participando de um ensaio de coral, todos responderam ao mesmo tempo:
– Taaaammoooossss!
Palco armado, plateia aflita e atenciosa, eis que as cortinas se abrem:
“Era uma vez um jovem nascido na riqueza material e na lucidez do trato e da convivência familiar. Ele era parte da família dos Cruz, que criava gado e explorava a agricultura na Espanha, mais propriamente na cidade de Soldeu, em Andorra, na Espanha, fronteira com a França. Antônio, uma forte homenagem que os pais faziam ao Santo. No Brasil, em meio à própria família, era tratado carinhosamente por “Bitônio”.
A família mudou cedo para o Brasil, e escolheu viver num povoado chamado Alegria, em Pedreiras, no Maranhão. Alegria ficava no pé da serra, lugar apropriado para a pecuária e a agricultura. Ali começaram a explorar a plantação de uvas com extensos parrerais; e criar gado, com a intenção de produzir queijos. Tudo ao pé da Serra da Libânia.
Os anos se passaram, a família cresceu com a chegada de outros filhos. Progrediu financeiramente, e acabou por se tornar conhecida e referência de tudo que estava certo. Família exemplar.”
Enchendo o cachimbo de fumo mais uma vez, “Bitônio” tentava fazer mágicas para que a plateia não percebesse que o personagem central daquela estória/história era ele mesmo. E continuou:
“Mas, a bondade só é boa e praticada, porque existem a maldade e os males fortalecidos por ela. Como dizem na maioria dos lugares: não há regra sem exceção.
A família do Cruz não seria a exceção da regra das maldades que destroem tantas coisas boas. Pois o nome dessa exceção era Agamenom, um dos mais novos da família. Ninguém conseguia explicações para sua vinda ao mundo. Com certeza não era obra divina.
Na vivência diária, todos trabalhavam juntos. A família não estava “dando conta de administrar de forma conveniente” os afazeres produtivos daquela “fazenda-família”. Houve necessidade da contratação de auxiliares, e isso começou a reunir pessoas vindas de diferentes lugares.
Eis que, de uma família descendente de franceses, apareceu Luciette, cuja formosura chamava a atenção de muitos. Pois Luciette foi contratada como responsável para atender e encaminhar os pedidos e encomendas dos itens ali produzidos e vendidos.
Não demorou muito, Luciette – embora o objetivo inicial não fosse esse – literalmente, enfeitiçou Bitônio.”
Curioso, demonstrando que prestava atenção à estória/história, Carrinho indagou:
– Tio “Bi”, ela botou feitiço no homem?
Embaraçado com a pergunta e mais ainda com a provável resposta, Bitônio atendeu Carrinho:
“Presta atenção, menino. “Feitiçou”, queria dizer que fez com que Bitônio se apaixonasse por ela.” E continuou a narrativa.
Os dois resolveram casar e o desejo foi atendido e abençoado por todos os familiares. Houve aquela enorme festa com o povo e amigos mais próximos comparecendo em grande número.
Aconteceu, entretanto que, invejoso e preocupado apenas em dificultar a vida e atrapalhar a felicidade dos outros, Agamenom resolveu investir contra Luciette. No início recebeu represália. Mais adiante as coisas começaram a mudar.
O que aconteceu foi que, poucos anos depois, Luciette cedeu e aceitou trair o marido que, até então a tratava muito bem e sem dar motivos para que ela o traísse. Mas acabou traindo. E o fez de forma tão explícita que todos souberam e ela não conseguiu mais esconder.”
A águia voou para o distante além
Nesse instante, a plateia embevecida, aguardava a continuidade e o desenrolar da estória/história, enquanto Bitônio voltava a abastecer o cachimbo. Novo pigarro, e continuou a narrativa.
“Quando a maioria esperava uma reação violenta de Bitônio, ele resolveu que a apenas aparente solução que o momento exigia, era acabar com a vida dos dois. Mas, num isolamento inicial, recompôs suas ideias e perguntou à si mesmo: o que ganharia com isso? Ele mesmo respondeu: nada!
Na madrugada seguinte, sem falar nada sequer para os pais, Bitônio arrumou algumas roupas, fósforo, querosene, lamparina, sal, açúcar e uma panela velha e saiu de casa sem destino certo. Acreditava que Deus o iluminaria e o ajudaria a encontrar conforto para continuar vivendo.
Quando o galo cantou anunciando o novo dia, quase todos reunidos para o desjejum, apenas alguns deram pela ausência de Bitônio. A mãe, aflita, ordenou que alguém fosse acordar Bitônio para o café.
Na volta, uma empregada, demonstrando tristeza, disse:
– “Seu Bi, não está na cama, nem dormindo”!
Foi, então, naquele momento que todos os olhares se voltaram para Luciette e Agamenom – e eles puderam sentir que a vida mudaria a partir daquele momento. Terminaram o café e, apressados, levantaram.
A coruja branca virou nova paixão
Bitônio procurou Deus e encontrou. Encontrou ensinamento e a luz que iluminou sua vida. Descobriu, entre outras coisas, que é possível o ser humano ter bons propósitos, abominar a violência e, por fim, viver sem a companhia de mulher. O que ele nem ninguém consegue, é viver sem Deus.
Alguns anos depois chegou à família, a informação que dava conta que Bitônio vivia sozinho, como um verdadeiro eremita, na parte mais alta da Serra da Libânia. Se acostumara com tudo, incluindo as dificuldades. Descia quase todos os dias para pescar no riacho que, com certeza, fora colocado ali por Deus e descoberto para saciar sua sede e matar a fome.
Todas as carências de Bitônio eram resolvidas pela Natureza. A Paz chegou junto com o gosto de apreciar os pássaros, como se um São Francisco de Assis estivesse presente nele.
Beija-flor os mensageiros entre Deus e Bitônio
Convivendo com as aves, a Natureza, e podendo usar o que Deus colocara à seu dispor, Bitônio transformou-se num homem bom, útil e sem maldades. Com o coração voltado apenas para fazer o bem. Era a retribuição do que Deus lhe proporcionava.
O tempo passou – nada como esperar o tempo passar, para fazer alguém enxergar as melhores soluções! – e Bitônio resolveu deixar o seu casebre humilde entre duas pedras grandes, inicialmente, uma vez por ano. Transformou-se num eremita contador de estórias/histórias, preferindo a plateia de meninos, que ele, dizendo apenas para si, acreditava que poderiam ser seus filhos, se o casamento com Luciette não tivesse sido interrompido pelo destino – mas ele acreditava fortemente, que o acontecido o levou a encontrar Deus e as boas atitudes.
Na primeira visita de Bitônio à antiga casa da fazenda, teve conhecimento que Luciette e Agamenom, envergonhados com o que fizeram, resolveram pelo suicídio através de envenenamento. Os pais também faleceram e os irmãos mais jovens passaram a tomar conta da fazenda.”
Ainda houve tempo para que uma criança, aflita e curiosa, tivesse coragem para perguntar:
– “Tio Bi, o “Bitônio” também morreu?!
A resposta, claro, não poderia ser outra:
– Não filha. Bitônio estará sempre vivo na lembrança de vocês. Vocês lembrarão deles, sempre que tratarem bem um beija-flor.