Lisboa — Foi aos 13 anos que Ricardo Bernardes disse ao pai, um conceituado médico de Curitiba, que seria maestro. O menino, que acabara de entrar na adolescência, ainda não tinha muita noção do porquê decidiu enveredar pelo mundo da música, mas pouca coisa o tinha tocado tanto quanto as melodias clássicas de Mozart que ele ouvia todas as manhãs no carro com a mãe a caminho da escola. A sensação era de que os acordes lhe tocavam a alma. "Meu pai levou um susto. Na cabeça dele, seria médico, como ele, advogado ou engenheiro", conta Bernardes, hoje, com 46 anos. "Meu pai até insistiu para que eu me inscrevesse no vestibular para tentar seguir nas profissões que ele considerava as mais adequadas para mim. Segui o conselho dele, mas também me inscrevi para música. Nas provas finais, faltei em todas, só fui atrás do meu sonho. E aqui estou", diz, sorridente.
O maestro reconhece que não é fácil viver de música, sobretudo no Brasil, onde a cultura não tem o respeito necessário. Por isso, a sua opção por se fixar em Portugal, onde governo e iniciativa privada investem pesado para que a sociedade tenha acesso a todo tipo de arte. Durante os dois primeiros anos da pandemia, por exemplo, o governo português e a Fundação Gulbenkian arcaram com todos os projetos culturais que foram suspensos por causa das medidas de contingência contra a covid-19. Artistas como ele não ficaram desamparados. Agora, com a retomada dos espetáculos, ele acredita que está na hora de todos que vivem da cultura entregar o que de melhor podem fazer para a população. É questão de respeito.
Ode ao barroco
Apesar de a paixão pela música ter sido despertada por Mozart, são as melodias barrocas que dominam as obras executadas por Bernardes. O interesse é tanto pelos artistas daquela época que ele comprou, em um leilão, um órgão construído no início do século 18. As teclas do instrumento são feitas de ossos. A relíquia fica guardada na Igreja das Chagas de Cristo, uma pérola encravada no centro velho de Lisboa. É muito comum a seus frequentadores ouvirem o músico tocar durante as missas. "A opção pelas canções barrocas vem desde o tempo em que estava em Curitiba, ainda muito jovem. Fui pesquisando e descobri um material muito bom, totalmente desconhecido, inclusive do barroco do Paraná", ressalta.
Boa parte desse trabalho de pesquisa estará presente nos dois concertos — que terão 90 músicos de várias nacionalidades — em comemoração ao bicentenário da independência. Além das obras de Dom Pedro I, estarão no repertório os compositores Marcos Portugal, José Maurício Nunes Garcia, André da Silva Gomes, João de Deus de Castro Lobo e Sigismund Neukomm. Esse último era muito próximo da princesa Leopoldina, mulher de Dom Pedro, oriunda da Casa dos Habsburgo, da Áustria, comandada pelo Rei Francisco II, pai dela. "A Capela Real do Rio, por onde transitavam todos os grandes artistas, chegou a ser a maior casa musical das Américas. Inclusive, foi no Rio que se apresentou, pela primeira vez fora da Europa, a ópera Don Giovanni, de Mozart", lembra Bernardes.
Essa riqueza musical se repetia na São Paulo dos tempos do império português, graças ao trabalho do então governador da capitania, Dom Luís António de Souza Botelho Mourão. Foi dele a ideia de construir uma casa de ópera na região, com as obras bancadas pelas famílias mais ricas da época. Mourão, que fundou pelo menos cinco cidades no Brasil, entre elas, Campo Mourão, no Paraná, integrava o Morgadio de Mateus, honra hereditária concedida pela coroa portuguesa. Curiosamente, o maestro é hoje o diretor artístico dos encontros musicais da Fundação da Casa de Mateus, criada pelo pai de Mourão em 1743. A instituição, referência em Portugal e no exterior quando o assunto é música barroca, está sob o comando da família de Mourão há 14 gerações.
Trabalho duro
Nesse período todo de aprendizado, Bernardes desenvolveu pesquisas que hoje são referências em se tratando da música barroca do Brasil e de Portugal. É dele, por exemplo, a edição da coleção Música no Brasil — séculos 18 e 19, em seis volumes e 2,5 mil páginas. "Mesmo nos momentos mais difíceis, quando a sensação era de que abandonaria a música, sempre houve pessoas que me incentivaram muito a continuar na estrada. Esse apoio é muito importante", assinala. Ele acredita que a opção de se fixar em Lisboa, há 13 anos, foi a base que lhe faltava para consolidar e impulsionar a carreira. "Fiz meu doutorado no Texas, nos Estados Unidos, mas foi um período muito solitário da minha vida. Quando desembarquei na capital portuguesa tive a certeza de que era o local ideal para desenvolver minha arte", conta.
Bernardes adora remexer nas memórias para planejar o futuro. Erros e acertos são avaliados para traçar planos. "A arte está entranhada em mim", frisa. Mas, por segurança, ele montou, com o pai, uma empresa de importação de vinhos de Portugal e desenvolve projetos no mercado imobiliário. "É preciso ter onde se apoiar", assinala. Desde criança, foi construindo pontes. A coleção de selos se transformou em coleção de discos de músicas clássicas garimpados em sebos. A ida a um concerto de dois pianistas garantiu a professora que lhe abriu portas no Teatro Guaíra, templo da cultura curitibana. As amizades foram fincando os alicerces que o levaram aos palcos de várias partes do mundo. "São 27 anos de conquistas e a sensação de que há muito por ser feito, especialmente em relação à música barroca, ainda desconhecida do grande público. Para mim, tudo sempre é novo", diz.